sexta-feira, julho 15, 2011

Florença ll


Florença por ela mesma, Florença por ficção. Genial apenas por tudo ter sido verdade. Desde a vontade até a idade. Cheiros e decepções, ilusões e percepções. Talvez no final, mas se a incerteza também é real, Florença é verdade.
Viver em Florença é desconhecido e viver de Florença é arriscado.
 Viver para Florença é solitário e demasiado inglório, ingrato.
Criar em Florença é mais divertido, infinito e cor de violeta
Como violeta são suas esquinas e curvas, que não me saem da cabeça
A mesma crença que me levou a ti, me fez te abandonar.
Certa estás, Florença, certa estás.

Florença De Florença
Fuego De Dios.

quarta-feira, julho 13, 2011

Florença


Que Deus abençoe os homens inspirados e as mulheres que os inspiram. As mulheres que os fazem, mesmo que em um curto espaço de tempo, levitar. Por um segundo que seja, quando o perfume dela penetrar nos sentidos dele, o estrago estará feito. Essas mulheres geralmente são incógnitas ao grande publico e muitas vezes seus destinos também. Penso o quão felizes são quando o fazem, penso quem são e onde nascem, ou mesmo porque se escondem. Por exemplo, que mulher que inspirou Coltrane a compor Black and Blue? Quem inspirou Andreas Bello, Virgilio, Cicerón? Que mulher inspirou Neruda para que escrevesse sobre Vodka com Relâmpagos e amor na mesma poesia? Que fim as levou? Será que foram efetivamente de seus inspirados admiradores? Por mais que seja frio abrir os sentimentos a um papel pálido como esse, por vezes é melhor. Ele aceita tudo o que você nele despejar e é capaz de ouvi-lo se duvidar. Compensa com receptividade o silencio que faz após o fim da história. Não lhe julga ou mesmo critica por algum erro, embora também não o aplauda, mas voluntariosamente lhe sede a outra face na forma de próxima página pára que continue, que tente novamente. Tentar novamente, aliás, é definitivamente outra ação que é mais fácil ao se escrever do que na vida real. Quando admiramos as obras desses homens é como se admirássemos também as mulheres a que foram dedicadas, é normal que as imaginemos como Vênus, uma deusa, quando na verdade não deixam de ser, pelo menos aos olhos de seus admiradores e em algum momento. De fato não precisamos saber quem são para saber o frisson que causaram na cabeça deles, tampouco seu nome.

Eu por exemplo, me dei ao deleite de dar nome à mulher que me inspirou a abrir meu coração, éramos contemporâneos, mas hoje eu sei que tinha alguns anos a menos que ela. Acredito que é possível que tenhamos vivido perto um do outro durante nossa juventude ou até mesmo passado um pelo outro em alguma praça ou escola, mas quis o tempo que nos encontrássemos muito tempo depois. Era economicamente um período difícil para todos. Enfrentávamos confrontos, guerras e fome. As famílias da cidade onde morávamos mandavam seus filhos e filhas para uma terra distante para que não fossem alistados e enviados para o campo de batalha. Eu sou o único filho de um casal de lavradores, alto, de pele mista, cabelo curto e olhos expressivos. Desde muito cedo gostei de escrever e no ano seguinte, quando deveria estar entrando para a universidade de letras eu me encontrava refugiado junto com outros rapazes em um casarão que nos servia de alojamento. Cheguei lá ainda jovem, com quase dezoito anos. O lugar era como uma fazenda muito grande, que servia também de refugio para alguns feridos de guerra. Era amplo, espaçoso e ficava em frente da casa onde ficavam as mulheres. A guerra durou anos. Por algum tempo ainda consegui trabalhar de dia e escrever a noite, mas essas chances eram escassas, mal tínhamos tempo para comer e descansar o corpo em uma cama fria. Quando cheguei à fazenda havia levado alguns livros, que li repetidamente por longos anos. Por volta de dez anos depois voltei para casa em um curto recesso da guerra, mas voltaria para a fazenda no ano seguinte em virtude de ser o único lugar da região que não havia sido afetada ou destruída e tivesse ainda alguma comida. Assim foi com praticamente todos que ali moraram esse tempo comigo.
 O casarão dos homens, que era o único que podia ser visto além das cercanias, cresceu muito ao passar dos anos, era vistoso e bem preservado, mas tinha um ar de melancolia que era fácil de ser absorvido após alguns anos longe da família. Logo atrás, ficava o casarão das mulheres, que era menor e mais limpo; tinha portas bem pintadas de amarelo claro e um jardim ao seu redor, que principalmente pela manhã quando recebia o sol, ficava perfumado e dava uma sensação de tranqüilidade a quem por ali passava. Com o passar dos anos fomos obrigados a construir um terceiro casarão, que ficava aos fundos do feminino, que era onde ficavam os casais, que li mesmo tinham se conhecido e constituído família. Mais ao fundo da área total ficava o local onde eu mais gostava de trabalhava que era o pomar, que era separado em três corredores de dez pares de cada tipo de fruto. Para quem o olhasse de frente, logo dando as boas-vindas, tínhamos as figueiras, que no fim do outono perfumava a entrada dos casarões de forma leve e suave. A seguir tínhamos laranjeiras, frutos do conde e um pouco destacado um grande parreiral, que ficava contíguo à parede da cozinha, que era um cômodo separado dos casarões e grande o suficiente para receber a todos nós na hora do almoço, mas o meu local favorito de trabalho era sem dúvida junto às macieiras. À minha esquerda ficavam as maçãs francesas e às minhas costas as maçãs do norte, que eram, na época, a maioria. Eu era responsável pelo ultimo corredor de maçãs, que abrigava as Maçãs de Florença, que eram as árvores mais raras e vistosas que tínhamos. Davam flores e frutas em abundância e de longe passavam imagem de força e beleza. Por vezes já na segunda semana da primavera era possível ver como ela se abrir e parecia gostar de vista. O verde das suas folhas combinava de forma única com o vermelho forte dos muitos frutos que nasciam. O fim das macieiras dava na entrada de onde instalamos cozinha e nela algumas mulheres cozinhavam toda a comida que comíamos e também alguma que era vendida a clandestinos que se refugiavam perto de nós, muitas vezes por não termos mais lugar para acomodar mais pessoas.

Quando adolescente vivi alguns romances, mas sempre fui solteiro. Já não lia há mais ou menos quatro anos e não escrevia há sete. Das mulheres que conheci na casa nenhuma me chamou a atenção a ponto de casar e tinha meu coração muito tranqüilo quanto a isso, talvez o fato de não ter vontade de escrever me incomodasse mais. Há mais ou menos um ano, passado o fim que chega com o mês de abril, aos poucos comecei a sentir uma sensação diferente antes de dormir. No inicio pensei ser solidão, ou mesmo falta de ter com quem conversar, mas o corpo cansado por vezes me obrigou a ignorá-la e dormir, mas não deixei de pensar por completo o que se passava; era como um calor, uma presença. Como uma brisa que me afagava o rosto, como minha mãe fazia, e me dei conta que há anos não pensava nela, mas era muito bom sentir aquilo. Não comentei nada com ninguém sobre isso, era por demasiado íntimo e gostaria de guardar aquilo pra mim apenas. Depois de algum tempo percebi que a poderia controlar. Se ficasse em silêncio e fechasse os olhos a poderia chamar e ela ficava à minha volta o tempo que eu quisesse. Aos poucos ela vinha e tomava conta de mim de forma lenta, muito devagar. Quem muito devagar também se manifestou foi à primavera, chegou com ventos fortes e muita umidade, mas aos poucos tratou de florir e perfumar tudo a sua volta como o de costume. Era a época do ano que eu mais gostava. Tinha o costume de subir em uma Macieira da Florença, que era a mais alta, e dela conseguia ver todo o pomar florido, desde as macieiras até as laranjeiras, mesclando tons de laranja, verde, verde claro, roxo e vermelho. Algumas vezes ali em cima tive vontade de escrever, principalmente vendo de cima a copa das árvores mais próximas que pareciam joaninhas vermelhas e conforme o vento soprava de leve me dava a impressão que dançavam e tentavam levantar vôo.
Foi e um dia assim, que ao topo eu fiquei em silencio e fechei os olhos, mas ouvi algumas vozes perto de mim. Abri os olhos e mirei para baixo e tive uma surpresa. Como se trazida pela primavera, a mulher mais formosa que já tinha visto apareceu em baixo da macieira. Com um cabelo vermelho passando seus ombros, franja rente aos olhos e um vestido cor de areia, mas esses olhos eram tristes. Meu coração disparou e por pouco não caí, fique nervoso! Nunca a tinha visto antes e toda a sensação que havia sentido nas semanas anteriores entrou de uma vez no meu peito como se fora flechado. Ela passou por ali de forma rápida e não tive tempo de observá-la mais. Naquela noite dormi pouco, tentei, mas não consegui descansar. Decidi deixar passar, poderia ter sido uma coincidência, ou algo assim. Procurei não subir mais na macieira e por conseqüência não a vi mais, mas não esqueci seus olhos e seus traços, que de fato eram muito delicados e suaves, mas os vi muito rapidamente. Por um tempo já não sabia mais o que havia de fato visto ou o que tinha imaginado tentando me lembrar. Aguardei por algum tempo para ver se passava aquela sensação, mas não passou. Afobado como um menino que rouba frutas da árvore de seu vizinho, subi na macieira novamente e ali fiquei por algum tempo na esperança de vê-la, senti algo bom em olhá-la e queria sentir novamente. Já havia perdido a noção do tempo quando a vi chegar, conversando com uma amiga em um tom muito baixo, mas sorrindo pouco e com os mesmos olhos tristes. O cabelo era o mesmo, tão lindo quanto na primeira vez. Ao vê-la falar puder reparar em seus lábios e como eram bem desenhados. Os dois minutos em que ela ficou sob meu campo de visão foi todo o tempo que tive para admirá-la, movimento por movimento, passo por passo, expressão por expressão. Dois minutos que quiçá valeram pelos mais de vinte que lá estava. Mesmo quando ela saiu das minhas vistas eu permaneci no topo da árvore, tentando de alguma forma guardar na retina aqueles feitios e tentando resgatar a imagem para achar detalhes que não tivesse visto ou prestado atenção, como uma fotografia. Assim, alguns meses se passaram e reparei que ela andava sempre com a mesma amiga e sempre nos mesmos locais. Questionei a algumas pessoas seu nome ou qualquer informação e nada consegui a não ser que tinha poucos anos a mais que eu. Frustrava-me não saber seu nome, então como a das vezes que a vi, foi do pé de uma macieira da Florença, esse passou a ser seu nome: Florença! Ambas eram as mais bonitas que já havia visto e a presença das duas mexia comigo de forma que não sei explicar até hoje. No auge da primavera as flores da Macieira da Florença eram muitas, com um tom forte de vermelho e com um acabamento muito fino, começavam de cima para baixo, cobrindo toda a copa e findando de forma uniforme e reta, como uma franja que ela usava. Era o nome perfeito, não poderia ser diferente. Dado o nome à musa, a inspiração passou a visitar-me mais freqüentemente, então passei a dedicar-lhe alguns poemas que mantive em segredo.

Possivelmente um dos mais rigorosos invernos que já tivemos acabou por se instalar em junho desse ano em nossa fazenda e não estávamos preparados para ele. Alguns de nós adoecemos e com menos pessoas tivemos que dividir algumas funções, minha querida Florença passou a trabalhar nas manhãs muito perto do pomar e algo em mim me intuiu que era o momento de tentar me aproximar, mas não poderia ser de qualquer maneira. Tudo da forma como se deu foi especial até aqui, desde seu nome até sua semelhança e perfeição com a natureza que me rodeava. Fiquei alguns dias a pensar no que poderia fazer, já que era demasiado tímido para iniciar uma prosa e não gaguejar, até que certa noite, ao começar a escrever, eu descobri! Mesmo com o frio rigoroso eu despertei-me mais cedo que o de costume e observei por alguns dias por onde ela andava e vi quais árvores eram as suas protegidas, que deveria preparar e depois colher as maçãs. Vi que iniciava na terceira da direita para a esquerda e seguida até o final do corredor. Vi também que a primeira árvore que começaria no outro dia tinha alguns frutos baixos, quase da sua altura, onde ela certamente olharia se algo lhe chamasse a atenção. Era madrugada do dia nove para o dia dez de junho quando me pus a escrever-lhe uma carta anônima, que lembro-me de cabeça ainda se necessário for, onde falava do mesmo carinho que senti por ela quando a vi e como ficaria feliz em conhecê-la um pouco mais. Falei do perfume que sentia quando a figura dela se fazia na minha mente e como se exalava em meu quarto também. Enrolei-o com um cordão fino o papel e amarrei antes de amanhecer ao caule da primeira e mais vistosa maçã. Hoje não me lembro se dormi ou não naquela noite, mas provavelmente não. No fim da carta pedi que se tivesse gostado da surpresa, devolvesse o bilhete na mesma árvore em alguma das frutas, e que o resgataria durante a noite. Foi sem dúvida o dia mais longo e nervoso que já passei na vida e a mesma sensação que senti, estou sentindo novamente ao escrever a história, como se fosse hoje. Durante a noite, abaixo de um frio rigoroso saí do meu quarto e  já tentava ver mesmo de longe a macieira, as maçãs ou mesmo o bilhete. Na parte de trás da copa, que ficava contraria a posição da primeira fruta, estava a resposta, escrita de seu próprio punho e amarrada em um cordão branco dedicada à mim. Me chamando de admirador e confirmando que havia, sim, gostado da surpresa. De fato não tinha visto ainda um sorriso dela, mas pude imaginá-lo claramente se abrindo após ler o que eu tinha escrito, assim como igualmente sorri, provocando uma festa em meu coração quando terminei de lê-lo. Me senti vivo novamente após muitos anos, assim como minha criatividade, imaginação e coração. O frio insistia em congelar meus dedos e minha mão ao escrever, mas sentia que tinha calor suficiente para compensar aquele ar gelado. Trocamos cartas pela macieira ao longo de toda a semana. Descobrimos que temos mais afinidades do que eu poderia pensar ou mesmo desejar que tivesse e ela da mesma forma. Ficou muito curiosa quanto a mim e muito feliz com o que eu fiz. Falava com graça que não pensava que um homem a admirasse daquela forma e que muito menos faria algo parecido. Falou-me também de seus medos e receios, e que sua vida havia sido emocionalmente sofrida até ali e que prometeu a si mesma se fechar por algum tempo para se curar. Ao fim de uma semana de mensagens trocadas ela quis me conhecer pessoalmente e meu velho coração voltou a suar, gritar e literalmente pular. Ora de ansiedade, ora de felicidade. Concordei com o encontro de imediato, sem pestanejar.
No fim de semana tínhamos um grande baile e todos os moradores dos casarões iriam, era a ocasião perfeita. Procurei em minha mala antiga o que havia sobrado de trajes elegantes para que eu pudesse vestir e causar boa impressão. Lavei e lustrei meu velho sapato de cerejeira e deixei reta novamente a aba do meu chapéu preto de flanela. Para a minha grande sorte, no fundo da mala, em um pequeno frasco de perfume, restava a dose feita sob medida para o dia seguinte. Nessa noite eu me lembro de ter dormido, lembro também de rezar muito para que tudo desse certo, conforme vinha acontecendo e também do frio que fazia naquela noite, a mais fria do ano, possivelmente.

Acordei cedo e espiei pela janela. Já havia movimento de pessoas indo em direção ao baile. Após um banho quente e renovador eu me vesti. Abotoei cuidadosamente botão por botão da camisa e depois do paletó. Vesti a calça como deve se vestir um cavalheiro, primeiro a perna direita e depois a esquerda, com cuidado para não desfazer o friso frontal. Sapato em cada pé, devidamente calçado e brilhando como novos. O chapéu foi colocado bem lentamente para não desmanchar o penteado. Já quanto ao perfume, deixei para colocá-lo no último minuto antes de sair para que durasse mais tempo em meu corpo.
Cheguei no horário combinado, dez da manhã, e no local combinado: Quinta laranjeira da primeira fila do pomar, na qual o corredor daria na entrada da festa. Mesmo com o frio, havia sol quando saí de casa, mas o tempo já dava ares de que uma chuva começaria em breve e logo me preocupei, pois não sabia se Florença traria seu guarda-chuva, pois eu não tinha nenhum! Minha ansiedade aumentava conforme o tempo corria, já era mais de dez e meia e nada dela aparecer, praticamente todos já estavam dançando e acomodados à suas mesas... A chuva se aproximava e não a via de onde eu estava. Onze e meia em ponto começou a chover. Uma chuva muito fria, que cortava a mim como uma navalha. A laranjeira me ajudou por um tempo, mas acabou por ceder e tive que procurar um abrigo mais firme, então caminhei em direção ao festival e vi de costas uma mulher de cabelos vermelhos caminhar rapidamente em direção aos casarões. Corri e a chamei, mas era em vão, era longe demais para que me ouvisse, mas com a chuva minha visão ficou turva e não tive certeza de que era ela, a minha Florença. Voltei para casa confuso e um tanto arrasado. Inventando motivos para que não tivesse aparecido...  Saquei meus sapatos completamente cheios de água e já sem brilho algum. Fiquei em casa por dois dias pensando no que poderia ter ocorrido. O porquê de não ter me procurado no evento. Meu Deus, tanta coisa poderia ter acontecido, é possível que não tenha roupa de chuva e frio e preferiu voltar para casa, que não tenha me achado talvez? Que tenha contado o numero de laranjeiras errado, são tantas árvores!!! É possível que tenha me visto e não tenha gostado de mim, por isso preferiu voltar, talvez tenha me achado feio...  Fato que até então não havia me passado na cabeça, não tinha me sentido feio até agora... Foi quando murchei exatamente como a laranjeira que cedeu com o peso da chuva sobre mim e não consegui me olhar no espelho durante os dois dias que passei em casa... A própria curiosidade da parte dela, as afinidades, os desejos... Porque não procuraria me conhecer melhor? Assim como ela eu não esperava o que aconteceu, foi tudo muito rápido. Era possível que ela tenha ficado assustada da forma como tudo se deu, que tivesse medo do que ia acontecer. Eram muitas possibilidades e mesmo assim não tenho certeza que era ela de costas, poderia ser qualquer mulher de cabelo vermelho...
Já no terceiro dia sem dormir, mesmo com chuva forte, eu fui até a nossa árvore para procurar alguma noticia sua ou qualquer sinal. Procurei em todas as maçãs do pomar algo que me aliviasse o peito, mas eram poucas as frutas que tinham se mantido firmes no pé com o temporal. Pensei em ir subir na árvore como antes, mas já não era a hora. Não mais. A vista lá de cima era fantástica, mas não sei me animaria como antes. A paisagem é bela aos olhos de quem vê e não sei os meus tem tal habilidade hoje. Voltei para casa e preferi esperar o dia amanhecer.
No quinto dia, após pensar muito decidi fazer as malas e deixar a fazenda. Enquanto arrumava minhas coisas, na manhã de hoje um amigo bateu-me a porta e disse que uma mulher do segundo casarão morreu de frio na madrugada que antecedeu o grande baile e embora tenha emudecido, preferi não saber mais detalhes. Virei as costas e saí em direção ao trem, mesmo me arrependendo cada passo que caminhava naquela estrada comprida, era como se cada perna pesasse dez quilos a mais. Fui o primeiro a entrar no trem e ajeitei as malas no bagageiro. Cada minuto que passava antes dele partir eu pensei em voltar e conferir se era ela no caixão, mas só de pensar em vê-la junto às outras pessoas ao redor do caixão e não dentro dele as minhas pernas tremiam de tal forma que mesmo se desejasse voltar, conseguiria levantar. A minha escolha agora era com qual sensação eu quero conviver até o fim dos meus dias, se a de um amor perdido ou com a rejeição. Imaginar a possibilidade de que ela ainda esteja viva e por ser conquistada... E de que esse conquistador não seja eu. O trem acabou de partir.

FIM 


Gabriel de Deus (De Florença)

The Fire Walk's with us

domingo, novembro 14, 2010

Par de Pernas (Tiger)


Parece que de alma leve os dedos ficam leves também, da pra escrever melhor, pensar melhor. Ouvir o que geralmente não ouvimos. Parece que se fecharmos os olhos conseguimos ver melhor algumas coisas e foi aí que passei por uma situação curiosa, que gostaria de compartilhar.

É engraçado ver o que é hoje apenas mais um par de pernas que não tive o que já foi forte alvo de cobiça. De intenso desejo. Enquanto segredo eram aos meus olhos eu conseguia me prender a uma boca larga a fina, a cabelos dourados e a gestos incomuns. Digamos que alguns minutos parei para vê-la passar e até perde-la de vista eu pensei. Com toda a imaginação eu criei. Levantei sua saia o dobro de vezes que por mim passou, e com que graça passou. Perna pós perna de leveza e pressa. Pressa que quanto maior fosse, exalava em mim um perfume doce que parecia natural. Menos mal que não a toquei, não me garanto a partir daí. Se fechos os olhos me sinto subir, desde a ponta do dedo, até o seu joelho. Em um cortejo beijo sua coxa por dentro e por fora. Beijos quentes e demorados, sem precisão e sem forma, apenas tributo. Me dou ao luxo de manter os olhos fechados, sem percepção de luz. Me guio cego por uma estrada sem rumo, mas de agradável trajeto. À medida que avanço sinto sua pele mais quente e mais úmida. Sinto na língua a textura fina e frágil, superfície única e indefesa. Com as duas mãos e com força as abri com cuidado e com vigor e não teve um canto que não foi beijado. Com a tentação ao meu lado deslizei os dedos por todas as curvas presentes... E observei...

Queria ter o dom de pintá-las... colocá-las numa moldura onde somente eu as visse, um mundo a parte. São arte aos meus olhos e não me importo de ser o único em vê-las assim, aliás, seria uma honra. É uma pena que a dona de pernas tão graciosas e pequenas seja surda. Surdez voluntária. Da cintura pra cima seu corpo é cego a arte literaria e por paradoxo não imagina o que senti. Mas por mais que a cabeça seja assim, são as penas que andam e elas vieram até mim. Exploraram minhas ideias e fantasias, me deixaram perto da magia de tê-las e  me sacaram dali. Preciso esperar, ser paciente e perseverar. Que um dia há de chegar, um par de pernas só pra mim.

Gabriel Voyeur de Deus
Camino con el fuego, tias.

sexta-feira, abril 23, 2010

Com cicatrizes, mas com graça.

Eu entro na quadra pedindo e saio dela agradecendo.

Lanço na direita e olho no sentido contrario.
Pra mim é vida o que pra você é desnecessário.
Sou raro.
Eu insisto no que amo e quero ser observado.
Mostrar pra quem puder o que é um cara apaixonado.


Gabriel das Quadras.
"eu tenho um amigo que voa, xará..."

sexta-feira, abril 02, 2010

Anjos

Cada momento decisivo da minha vida foi assinado por uma mulher, tem sido uma constante e espero que siga assim. É uma pequena homenagem que faço a quem tanto tem me ajudado

Uma mulher me deu a vida e ela mesma encarregou-se de dar metade da dela por mim. Caminhou contra o sol de olhos abertos para que eu vivesse e desenvolvesse um dom. Não o de falar, mas o de tocar. Mesmo que seja tocar os dedos e converter em palavras as emoções que enchem meu peito. Dom de pensar, criar e assim poder relatar o que faz das mulheres seres tão perfeitos.

Nasci em um domingo de sol, as sete e meia da manhã, talvez daí meu sangue quente, minhas relações intensas. Minhas veias fervem só de olhá-las, quem dirá poder dedicar-lhes alguns versos, mesmo que sem pretensão. A real intenção é ter gravado na retina cada momento em que as tive por perto, por certo lembrarei do cheiro doce, da pele macia e da sensibilidade. Dos questionamentos e das respostas que em mim busquei pra seguir a diante, não obstante, admiro. Que mesmo leves como o ar que respiro, que sejam ainda lindas e fiéis. Surpreendem pela força e pela delicadeza,por chegarem nas pontas dos pés nos sonhos de homens como eu... Que privilegiado sou apenas de dividir o mesmo espaço, mesmo chão. Meu ouvido pede que cantem mais, que não cessem jamais. Suas vozes são reais porque rainhas são. Cantam a vida e me encantam quando dançam tambor.

O próprio corpo da mulher fala por si, parece feito a mão, desenhado com muito esmero e cuidado. É um templo que precisa de carinho e amor, cada detalhe precisa ser lembrado, isso é fato.

Filhas terei e ei de lhes dar nomes de flores,serão para sempre meus amores e meu orgulho, em um futuro não muito distante. E não se espante, se uma mulher salvar sua vida amanhã,amigos meus... Elas amam o que fazem e aparecem sempre em locais e horários apontados por Deus.
Nem todas as mulheres sabem a força que tem, e para essas faço questão de escrever sempre meus versos. Para as que sabem dedico toda a inspiração que ronda meu universo. Quantas mulheres entrarão ainda em minha vida não sei, mas espero que quantas sejam necessárias para voar junto delas e saber de onde vêm.


Por Dora, Izaura, Odiles, Sabrina, Gaby Benedict, Dina Di, Karran, Ellen, Lisiane, dona Helena, Lucélia, Bi, Gaby, Tatá e Jorgett.
Obrigado por deixarem minha vida mais perfumada, aquarelada e sadia.

O fogo da inspiração vem de vocês.
Gabriel de Deus

terça-feira, março 23, 2010

Até mais, Dina...

Até agora é meio dificil de acreditar, sabe. A Dina era minha amiga, quase da minha familia, embora não soubesse. Aliás, não sei se ela tinha a noção de até aonde a voz dela chegava, a mensagem dela era ouvida ou mesmo até aonde a própria vida dela era exemplo, era exposta.

É meio complicado admitir, mais ainda é sentir a falta dela. Mas ela era um anjo com uma vida terrena diga de filme. Cresci ouvindo, prestando atenção em como ela agia, escrevia....

Sem palavras, Dina. Graças a você a minha adolescencia teve várias marcas, mas de admiração, de respeito. Sempre esteve e sempre estará presente em minhas orações, não importa o que aconteça, fica firme aí que a gente segura as broncas aqui em baixo, da um alô no Sabotage, no Denner, na minha vó Dora e em mais um monte de gente.

Te amo muito, foi e será um prazer te ouvir, fica com Deus.


Gabriel de Deus está de luto e o fogo também!

domingo, março 14, 2010

Tempo Cego

PRIMEIRA PARTE, SEGUNDO ELE:

Sempre me dediquei muito ao meu trabalho, fiz tudo que pude pra me destacar, subir de cargo. Mesmo mais novo que meus concorrentes cheguei a um cargo importante em um conhecido escritório de contabilidade, que lidava sempre com grandes clientes. Essa vida competitiva me fez colocar em segundo plano uma paixão de infância, que é a fotografia. Tirar fotos foi meu grande amor até entrar na faculdade. Não me casei, embora tivesse tido diversas oportunidades. Há anos não falo com minha família, não sei se estão vivos ou mortos. Acabei me desligando deles conforme o tempo passava e assim ficamos por anos. Às vezes temo que não tenham me procurado por realmente algo ter acontecido, meus pais já eram velhos quando me formei. Inclusive no dia que me formei não me lembro de tê-los visto. Recordo-me de ter voltado para casa ao fim da cerimônia sozinho e assim ter ficado por um bom tempo. Sem festas, farras e durante dias mesmo, sem uma palavra. Sinceramente não sentia falta dessa agitação.
Há alguns anos comecei a acordar com uma leve tontura, que foi piorando com o tempo e se estendia ao longo do dia. Incomodava-me no trabalho, então fui a um médico e após alguns exames foi diagnosticada uma doença rara que afeta a visão. Dentro de pouco tempo eu estaria completamente cego e sem expectativa de voltar a enxergar. No início foi um choque. Fiquei sem dormir por semanas. Mas aos poucos fui me conformando. Meu chefe informou-me que estava trabalhando nos papéis de minha aposentadoria por invalidez e dentro de três meses eu já não trabalharia mais. Foi o segundo choque. Não tive a menor vontade de procurar minha família, até porque não saberia onde procurá-los passado todo aquele tempo.
Embora parecesse paradoxal resolvi, na minha primeira semana de aposentado, colocar uma câmera fotográfica na mochila e mudar-me para o sul, onde o inverno era rigoroso e havia uma região com muitas montanhas. Já conhecia o lugar através de fotos e fiquei com vontade de vê-las pessoalmente. Hospedei-me em um hotel perto das montanhas. Para o meu descontentamento o povo sulista era demasiadamente hospitaleiro e faziam-me perguntas o tempo todo. Perguntas que não queria responder, queria ficar calado. Mas o ambiente e o clima frio me agradaram. Conheci as montanhas e perto dessa região comprei uma pequena casa, de onde as via de frente, onde passaria o restante de minha vida. As montanhas eram mais lindas ainda pessoalmente. Eram enormes e contrastavam com o céu cinza chumbo de uma forma única. A noite, pela janela de meu quarto, conseguia ver as nuvens se alojando nos seus picos mais altos. E muitas vezes fiquei acordado até o amanhecer para ver a alvorada por detrás das nuvens. Não havia duvida, era esse o lugar. Por mais que não fosse voltar a vê-las quando velho, era defronte a um lugar assim que queria morar. E mesmo que não pudesse ver as fotos que tirava, segui fotografando aquela paisagem dia e noite, de todos os ângulos possíveis.
Passei a usar uma bengala e óculos escuros para tentar adaptar-me ao local o quanto antes, e também evitar contato o povoado. Passei a aceitar ajuda para atravessar a rua e rejeitei uma doação de um cão guia. Tirava as fotos quando sabia que estava absolutamente sozinho e sempre cada vez mais de perto das rochas que davam origem as montanhas. As poucas pessoas que tinha, mesmo que fosse um pequeno contato, julgaram que já estava cego. E cego ou não sabiam que era de pouco diálogo. Ao passar de quase um ano a cegueira não apareceu e eu já vivia mais dentro do meu personagem do que havia planejado. Tinha todos os modos e costumes de uma pessoa cega sem ser.

Estava completamente adaptado ao meu futuro estilo de vida, e em uma manhã de domingo de extremo frio, fotografava a entrada de uma pequena caverna no pé de uma das montanhas quando ouvi passos perto de mim que vinham se aproximando com rapidez. Mal tive tempo de colocar os óculos e esconder a câmera entre as rochas, quando uma menina linda de um vinte e poucos anos que aparentava ser cega acompanhada de um senhor de idade. Passaram por mim apressados em direção ao povoado. Minha atitude suspeita chamou a atenção do homem, que a aproximou de seu corpo rapidamente em um movimento de proteção, sem notar acabei seguindo-o com os olhos e ele a mim.


SEGUNDA PARTE, SEGUNDO ELA:

Perdi a visão de forma repentina há cinco anos, pouco depois que vi minha mãe morrer. Vivo com meu pai desde então numa casa enorme. Vivemos do dinheiro da aposentadoria de meu pai, que a cada ano que passa está mais doente. Tenho esperanças de que melhore, mas no fundo sei que em breve me deixará também. Na verdade ser cega não é tão ruim quanto eu pensava, não suportaria vê-lo como vi minha mãe, magra e pálida. Há coisas que é melhor não ver, embora não tenha escolha de não senti-las. Meu pai tenta preparar-me para sua morte, para que eu tenha uma independência. Leva-me diversas vezes a diferentes pontos do povoado para que eu memorize o caminho. Avisou-me sobre lugares que não devo ir, pessoas com quem não devo cruzar. Aprendi com o tempo a notar a voz das pessoas, o tom, o timbre, e as emoções que tentam disfarçar através delas. É como olhar alguém nos olhos, como ler seus pensamentos. Os pensamentos de meu velho pai entregam seu amor e zelo por mim, às vezes excessivos. Pude notar respeito que ainda tem por minha mãe também quando o ouvi negando um convite de sair com uma mulher que o reconheceu na rua. Eu estava com ele, mas ela mesmo assim o convidou. Era como se eu fosse surda ao invés de cega, mas as palavras e o tom pesaroso na voz dele ao negar o convite indicavam sinceridade. No mesmo dia íamos em direção ao povoado quando algo assustou papai, ele se aproximou de meu corpo me abraçando com o intuito de proteger-me, hesitou, mas não parou de andar. Questionei o que se passava e ele disse que um homem alto, de cabelos escuros tirava foto das montanhas e quando sentiu nossa aproximação vacilou e jogou a câmera entre as pedras e pôs seus óculos escuros, mas antes disso o olhará como tivesse sido descoberto. Pediu-me que não passasse por ali mais.

Pouco tempo depois disso papai ficou de cama e em duas semanas veio a falecer.


TERCEIRA PARTE, SEGUNDO ELE:

Ela era linda, simplesmente maravilhosa. Tinha uma beleza selvagem e singela ao mesmo tempo, difícil de explicar. Cada traço de seu rosto era doce e perfeito. O jeito como andava, mesmo agarrada ao braço do pai era gracioso. A visão mais linda que já tive desde que cheguei. Embora aparentasse a cegueira estava muito bem vestida e maquiada, como se desenhasse seu rosto todo dia de manhã. Naquele dia fui embora para casa com algo palpitando em meu peito, algo anormal. Assim fiquei por dias, tentei disfarçar, mas o rosto e corpo dela não saiam de minha cabeça. Pensei em fotografá-la e assim poder admirar suas fotos o dia inteiro. Caçaria aqueles traços por cada canto desse lugarejo. Cada segundo que a pudesse ver valeria a pena, afinal de contas não sabia se amanhã ou hoje mesmo deixaria de ver e me arrependeria certamente de não tê-la visto novamente. Saí de casa de manhã cedo com bengala, óculos e com a câmera na bolsa na esperança de vê-la. De tanto pensar nisso a imagem dela em minha mente estava ficando demasiadamente fantasiosa, minha retina precisa vê-la novamente para guardá-la. Rodei por alguns dias e nada encontrei, porém no ultimo dia de caça vi muitas pessoas rumando com lágrimas nos olhos, vi um caixão em meio às pessoas e de luto na segunda fila da procissão, cabisbaixa e chorosa, sendo guiada por uma velha senhora. Deduzi que o homem no caixão era seu pai. Era mórbido, mas ela estava linda de preto, seu cabelo era muito comprido e liso, tinha um tom avermelhado e uma franja que a deixava parecida com um anjo. Acompanhei-os até o cemitério e sol começa a se pôr quando chegamos. Algumas pessoas se aglomeravam ao redor do caixão e esperei que ela se posicionasse. Ela ficou junto á lápide há uns quatro passos do caixão. Achei uma árvore de tronco largo e galhos grandes há alguns metros dali e certifiquei-me de não estar sendo visto. Saquei a câmera e o ângulo que tinha dela era simplesmente perfeito. Fotografei suas mãos, vestidas angelicalmente com luvas pretas de renda, e seus dedos que se entrelaçavam como se orasse naquele momento. O casaco que vestia deixava o pulso à mostra até onde as luvas passavam a vestir. Sua pele tinha um tom claro e uma textura macia, sedosa. Seus ombros eram pequenos, como os de uma boneca, afinavam até o pescoço que era limpo, sem colares ou adereços. Seu queixo era fino e sua boca também. Poderia ficar ali por horas. Tinha definitivamente todos os traços delicados e bem feitos e o fato de estar triste não a tirava ou diminuía esses méritos, pelo contrário. Com o tempo familiares e amigos a cumprimentavam mais e tive que cessar as fotos. O caixão desceu e algumas pessoas iam indo embora, voltei a misturar-me com os demais e com eles fui embora, a segui para ver onde morava. Era uma pequena casa de madeira de dois andares. Do outro lado da rua pude ver que ela se negara a ir a algum lugar, que preferia ficar sozinha em casa. Fiquei seriamente tentado a subir, dar-lhe meus pêsames e poder ouvir sua voz. Não sei como e tampouco sei se me receberia. Seria pegá-la num momento de fraqueza. Ela entrou e fechou a porta, mas fiquei ali fora por alguns momentos ainda, talvez horas. Olhando para a casa fechada numa noite fria. Tomando coragem para bater a sua porta.


QUARTA PARTE, SEGUNDO ELA:


Estava arrumando-me para deitar, mesmo que não fosse conseguir dormir. O caminho do velório até o cemitério foi cansativo, parecia que não chegaríamos nunca. Cada mão que pegava em meu ombro com uma palavra de consolo parecia afundar-me mais em tristezas e recordações. Papai era um homem conhecido, nasceu ali e ali viveu a vida toda, assim como mamãe. Tive por alguns instantes a vontade de dormir e não acordar mais tamanho era o vazio em meu peito, senti-me sem um braço. Senti vontade de correr sem parar até não ter pernas. Pensei em me mudar pra bem longe, começar tudo de novo... Deitei e passei a pensar nisso. Algo deveria mudar... Levantei-me e decidida a deixar a cidade junto com o nascer do sol comecei a procurar minhas malas, mas alguém bateu à porta. Já era tarde e algo dizia que deveria abrir. Era um homem, meio sem graça, sem jeito para falar. Ouvia a voz dele acima da minha cabeça o que significava que era alto. Pediu-me desculpas por incomodar-me àquela hora da noite e dizia que era amigo de meu pai, que fora pego de surpresa com a noticia. Não o convidei para entrar e também na hora achei que ele não esperava esse convite. Falei que não me recordava de seu nome e tampouco de sua voz, embora essa, apesar de insegura, fosse muito grave e bonita. Gaguejou sem graça e disse que fazia tempo que não o via, o que justificava o fato de não saber que papai estava doente quase cinco anos. Agradeci a estranha visita e fui fechando a porta, mas ele segurou a porta e disse que se recordava de mim e que eu continuava bonita, assim como ele me imaginara estar. Essa frase da forma como foi dita ruborizou-me na hora, mas agradeci e fechei a porta. Fiquei pensando no que ele disse e tentei resgatar da memória seu nome ou voz. Passei a limpo minha memória de infância e nada. Pouco dormi nessa noite. Ao amanhecer fui ao mercado da cidade e perguntei ao dono pelo nome do homem que havia me visitado, disse-me que sim, que o conhecia e que se tratava de um homem cego de cabelos pretos que morava perto das montanhas e que há pouco deixara o local, que não deveria estar longe, ofereceu-me ajuda para encontrá-lo, mas neguei. Cego?

Como falar com ele novamente? Como poderia ser cego? Voltei para casa e sentei no sofá. Deixei as malas prontas para me mudar, ficaria em um hotel em outra cidade até repor os pensamentos no lugar. Embora não tivesse visto papai morrer sinto o cheiro dele por toda a casa e isso apenas traz lembranças que não são bem-vindas agora. Deixei as malas perto da porta e voltei a sentar. Pensativa. No fundo queria que ele voltasse a bater à minha porta e por isso esperei. A noite chegou e adormeci ali no sofá. Acordei de madrugada sentindo-me terrivelmente sozinha e chorei... Chorei o que não tinha chorado por anos... Já era de manhã quando resolvei pegar as malas e ir embora quando ouvi batidas na porta. Meu coração disparou, mas não sei por que, poderia ser ele como poderia ser algum vizinho para consolar-me. Enxuguei os olhos e abri a porta. Pude sentir os raios do sol atrás dele projetando sua sombra em mim. Ele perguntou como estava e perguntou se precisava de algo, falei que nada se passava e que estava de partida. Pedi que entrasse e ofereci um chá. Vi que o som de uma muleta se misturava a seus passos. Notei que tateava os moveis a procura de onde sentar-se. Questionei há quanto tempo era cego...

QUINTA PARTE, SEGUNDO ELE:


Respondi que era cego há pouco tempo, devido a uma doença. Falamos um pouco sobre essa coincidência e sobre outras coisas. Entre um assunto e outro fazia perguntas para tentar se lembrar de mim, mas disse apenas que era conhecido de seu pai e que havia passado um tempo fora. Mesmo através do óculos escuros era impossível não notar sua rara beleza e delicadeza. Tinha uma casa muito bem organizada, limpa e estrategicamente montada para ela. Contou-me que estava de partida para outra cidade, que precisava mudar de ares, porém não com muita segurança. Num impulso ofereci-me para ir junto. Ela riu como se gostasse da idéia, mas disse que eu deveria ter família, mulher, filhos. Disse que não, que era um cego solitário como ela e que um recomeço ao seu lado seria perfeito para mim. Ela estava sem óculos, pude ver que tinha olhos castanhos claros e que brilhavam muito, se eu não soubesse que não enxerga não adivinharia nunca. Em uma situação normal acho que me olharia nos olhos, porque era o mesmo que eu fazia com ela. Então pediu que dissesse algo... Segurava a caneca de chá de forma inquieta, esperando que eu tomasse a frente da situação. Segurei sua mão, toquei seu rosto e a beijei. Tocar aqueles lábios foi a coisa mais incrível que já havia feito. Disse-lhe que sim, que gostaria de ir junto para outra cidade e assim o foi. Em uma semana já estávamos morando juntos bem longe dali.

Fechei dois anos à espera da cegueira que graças a Deus não apareceu. Talvez a única coisa que me agradava mais que ficar com ela era ver seus movimentos, como andava pela casa, a expressão que seu rosto trazia. Montamos tudo conforme era necessário, eu cozinhava na maioria das vezes e ela me perguntava como fazia sem enxergar, eu desconversava, disse que tive um restaurante onde morava antes. Ela quis contratar uma empregada para fazer os demais afazeres e fui contra, afinal estávamos nos arranjando bem daquela forma. Era um prazer viver ao seu lado e tudo estava perfeito.

Tínhamos um balanço nos fundos que ela gostava muito, ficava perto de um pequeno jardim que ela cuidava e que exalava um aroma doce e suave. Gostava de ficar ali por horas. Numa tarde de outono eu observava aquela cena quando decidi registrá-la. A iluminação natural estava ótima e não poderia ser melhor, sem que me ouvisse ou sentisse tirei diversas fotos, que mais tarde revelaria num quarto aos fundos que mantive fechado a chave. Fotografá-la era mais uma forma de mantê-la mais viva em minha memória. Entramos, jantamos e deixei que fosse tomar banho. Vi quando tirava sua roupa com leveza. Saquei novamente a câmera e fotografei novamente aquela mulher fantástica enquanto tocava cada parte de seu corpo de forma intima e delicada enquanto a água quente a acariciava e levava a espuma embora. Quando terminou guardei a câmera em uma caixa que ficava no alto do guarda roupas onde ficava também a chave do quartinho, que não era um local de fácil acesso para ela.

No dia seguinte fui ao mercado sentindo-me culpado... Comprei ingredientes para fazer a sua comida favorita e também uma bebida. Encontrei a casa no mais absoluto silêncio. Ela dormia como um anjo no sofá e seria um pecado acordá-la, então fui revelar as fotos no quartinho dos fundos. Revelei mais de cinqüenta fotos suas e todas eram maravilhosas, peguei um copo com rum e fiquei trancado no quarto olhando detalhadamente cada uma delas... Por horas...
Dei por mim quando ela disse meu nome quase na porta do quartinho, quase me matando de susto, perguntou o que havia e eu disse que nada, estava apenas tomando um pouco de rum, mas ela notou meu nervosismo e perguntou sobre aquele quarto que eu havia dito que estava com a porta emperrada, respondi que tinha conseguido abri-lo e que não tinha nada além de uma bancada com algumas bacias e um varal. Ela ficou quieta depois daquilo e quase muda por uns dias. Senti-me culpado por ter mentido, não só dessa vez, mas por todas as outras... Para piorar no dia seguinte senti a visão um pouco embaçada e fiquei desesperado! Justo agora a cegueira apareceria. Fiquei alterado por uns dias, mas ela não perguntou o que havia acontecido. Não dormia a noite com medo de acordar completamente cego no dia seguinte, mas não resisti e dormi. A fatalidade veio a acontecer.


SEXTA PARTE, SEGUNDO ELA:


Havia sem duvidas algo de estranho acontecendo em minha casa e eu não sabia o que era. Depois do fato da descoberta do quarto dos fundos ele mudou muito, anda calado e tenho tentado saber o que se passa. Ele estava dormindo muito pouco, até que um dia despertou completamente assustado, sua pele estava gelada e ele estava muito nervoso. Disse que chamaria um médico e ele disse que não precisava, que apenas tinha tido um sonho ruim. Saiu a andar pela casa tropeçando em praticamente tudo, caiu algumas vezes da escada, queimou-se na cozinha e mesmo assim seguia contra contratarmos uma empregada. Flagrei-o chorando sentado como uma criança um dia de manhã em frente ao quartinho dos fundos. Questionei o que afinal estava acontecendo e ele nada conseguiu dizer. Sentei junto a ele e ali ficamos abraçados por algumas horas, ele parecia pedir socorro e não sabia como ajudá-lo. Comia pouco e passou a emagrecer, se negava a ir ao medico ou a receber a visita de um, por vezes dizia que me amava muito como se fosse prosseguir e contar algo, mas calava ou o choro o impedia. À noite na cama, um pouco mais calmo, após alguns carinhos disse-me coisas lindas que nunca havia dito antes, a maioria delas eram agradecimentos por ser alguém especial em sua vida e que nunca tinha tido alguém assim. Depois de muitas noites em claro ele dormiu bem novamente. Mas para a minha surpresa, pela manhã eu abri os olhos e vi um clarão, fechei-os novamente e abri bem vagarosamente. Era um lindo raio de sol que entrava casa adentro através da minha janela. A visão começou muito embaçada, mas aos poucos foi ficando nítida. Entrei em êxtase, estava voltando a ver, poderia ver tudo novamente. Acordei-o e contei que podia ver novamente, embora meus olhos doessem um pouco e pra minha surpresa ele se enfureceu, me questionou, pensou que estava zombando de sua cegueira, disse que não, que era lindo, depois de muito tempo estava vendo tudo novamente, falei de como ele era mais bonito que eu pensava e ele começou a gritar. Levantou sozinho e tentou sair, mas caiu em frente à porta do quarto. Sentia-me tonta, mas mesmo assim tentei ajudá-lo, ele me empurrou, disse que não precisava de ajuda. Comecei a chorar também, não sei se de alegria ou de tristeza. Recusou-se a falar comigo o dia todo com uma fúria no rosto.
Olhei pela janela e o vi no balanço onde me sentava todas as tardes, vi o jardim que eu cuidava com todo amor e carinho, era primavera e ele estava magnífico. Com orquídeas e margaridas, pensei que há anos não via uma flor, não via cores, não via o céu. Foram anos e mais anos sentindo apenas o calor do sol na minha pele e agora ele estava bem ali acima de mim. Exatamente como eu me recordava dele. Olhei-me no espelho e enchi novamente os olhos d’água. Estava dez anos mais velha, mas poder ver meu rosto outra vez é algo que não há tempo que pague. Vi um vestido azul lindo que ele havia me dado quando chegamos aqui e as demais roupas que usava, meu cabelo continuava como eu imaginava, era mágico. Mas não tínhamos o costume de guardar nada no alto dos móveis e uma caixa de sapatos me chamou a atenção em cima do guarda roupas. Para o meu espanto havia nela uma câmera fotográfica profissional e pelo manuseio não estava desativada há muito tempo. Junto a isso encontrei uma chave... Fiquei estática por alguns instantes, que se passara ali? Tremendo muito fui diretamente ao quartinho rezando que aquela porta não abrisse, mas ela abriu. Dei logo de cara com muitas fotos minhas penduradas por todos os lados, fotos que não quero voltar a ver e que devido o tamanho da mágoa seriam o único motivo pelo qual eu gostaria de perder a visão novamente...

SÉTIMA PARTE, SEGUNDO ELE:

Aquilo não poderia estar acontecendo, era um pesadelo... Sentado aqui não tenho forças para levantar-me e tenho vergonha de pedir algo a ela. Estou pagando um preço alto por tudo que fiz, mas não fiz por mal, eu juro. Mas pouco importa o que eu jure ou não. Eu no lugar dela me deixaria apodrecer aqui nesse balanço onde nem chorar eu consigo mais, nem isso me é permitido. Estou fadado a carregar o peso da culpa pro resto da vida e mesmo que ela me perdoe eu não permitirei, não o mereço. Eu não mereço falar uma palavra sequer. O certo é que daria tudo para vê-la novamente, não posso esquecer seu rosto...


OITAVA E ÚLTIMA PARTE, SEGUNDO ELA:

...mas os olhos que choram são os mesmo que vêem e os mesmos que se emocionam. Olhei novamente pela janela e o vi lá sentado, com os olhos bem abertos em direção ao céu, tentando ver alguma coisa, talvez o raio de sol que vi. Ele tenta chorar, mas não consegue, parece que já sabe o que acabei de descobrir e está destinado a viver com isso.

Peguei a câmera, tranquei o quartinho à chave, os devolvi para a caixa de sapatos e coloquei tudo em seu devido lugar novamente. Algum tempo se passou e ele não falou mais nada, nunca mais, mas tentou enterrar a caixa e a chave no quintal. Em um ataque de solidão desenterrou-a e ficou horas com a câmera na mão, e por vezes abre a porta do quartinho e coloca as fotos bem diante dos olhos como se ainda as pudesse ver. Exatamente como se eu não estivesse ali.


Fim!!!

Gabriel de Deus / Pássaro
Fire forever!!!

sábado, fevereiro 27, 2010

Pedro Mão Fina

Imagine você qualquer cidade pequena de clima bucólico e rústico há muito, muito, muito tempo atrás. Bem ao sul há uma fazenda, muito bem cuidada. Nesse mesmo espaço há mais tempo atrás ainda chegou a comportar duas fazendas. O dono de uma se endividou e acabou por vender sua parte ao dono do atual espaço por um preço irrisório e passou a ser peão numa terra em que já havia sido sua. O atual dono casou-se e teve duas filhas, uma muito bela e uma nem tanto, que atendia pelo nome de Frederica. O chefe dos peões, que antigamente era o dono de metade daquele imenso lugar também teve filhos. Um belo e trabalhador e outro apenas trabalhador, que atendia por Pedro, ou Mão Fina, adjetivo esse que ele odiava só de ouvir. Apelido dado pelo fato de ter uma mão sem calos, por vezes fraca. Que não era firme no aperto de mão e que dava a impressão que o moço não era chegado a trabalhos pesados. Fato esse reforçado devido a não ser muito prendado em serviços manuais era maio desengonçado. Seu irmão, pelo contrário tinha ombros largos, pernas e voz grossas, além de um aperto de mão que mais parecia um prensa.

Os rapazes e as moças foram criados praticamente juntos, apesar da relação patrão e empregados e foram crescendo. Rica, que é como chamaremos a segunda filha do Patrão, era muito tímida, por vezes parecia muda, enquanto Mão Fina, apesar de não ter controle sobre sua língua, fosse o peão mais falante de todos. E aos poucos começou a olhar com outros olhos para Rica, que de vez em quando retribuía os olhares. O patrão tinha total confiança nos rapazes e no serviço feito. Porém numa manhã de domingo chamou o chefe dos Peões e disse:

- Seus filhos estão grandes, não? Cresceram rápido...
- Cresceram, sim, senhor... Tão bem grande os moço...
- Eles lhe ajudam parelho no trabalho?
- Sim, nem tem porque não, senhor... É a vida que sobrou, né?
- Pois bem, com que idade Mão Fina está?
- Ora, senhor, com todo respeito, o nome do rapaz é Pedro... Ele num gosta muito de ser chamado assim.
- Tudo bem, tudo bem... Mas com que idade ele está?
- Com a mesma idade que eu e o senhor nos casamos e compramos essas terras...
- Outro dia o vi trabalhando e não pude deixar de notar que suas mãos ainda não tem calos... São fracas!
- O menino ta em fase de crescer, vamos aguardar
- Apenas observei, compadre.... Ele já é assim há um bom tempo, dê mais trabalho a ele, quero ver a mão dele assim como a do irmão. Peão de Mão Fina não é bem falado. Digo isso em respeito a você, se fosse qualquer outro eu já mandaria embora.
- Mas o rapaz trabalha senhor, se esforça. Mas tudo bem, vou pedir que capine mais um pouco então.
- Assim espero.

O pai fica desenxabido e procura o filho para uma conversa. Ao longe vê o primeiro filho ajudando Rica a trazer os livros de escola. Do outro lado da fazenda, observando a mesma cena debaixo de uma árvore estava Pedro, o Mão Fina. Pedro não sabia ler, as únicas com direito ao ensino ali eram exatamente as filhas do patrão. Mas a julgar pelos olhos dele para a cena estava certamente curioso pelos livros, mas não mais atraído que por Rica, que ruborava a cada olhada do moço.

Alguns dias se passaram e com eles muitas idéias na cabeça de Pedro, como se aproximar da moça ou mesmo ser notado da forma que ele queria? Seu pai havia pedido que ele fosse até a casa do patrão para pedir a chave do estábulo. Viu a chance perfeita de vê-la, então foi confiante, porém nervoso. Chegado à sala vê a mãe da moça que lhe estende a mão e lhe dá bom dia, inquieto ele estende a mão fina da direita e a cumprimenta, pede a chave e enquanto aguarda corre os olhos por todo o local. Vê Frederica sentada na sala ao lado lendo de forma compenetrada um livro de capa grossa e azul. Fica curioso e na ameaça de dar um passo a chave lhe é entregue pela mãe da moça. Ele volta animado, achou já ter visto um livro em sua casa, mas não se recorda bem ao certo. Pôs-se a procurá-lo em casa, mas nada encontrou. Resolveu falar com seu pai:

- Pai, uma vez vi um livro aqui em casa, o senhor sabe onde ta?
- Pedro, bom ter tempo de falar, quero falar-te uma coisa.
- Ué, pai, que se passa?
- Pedro, outro dia o patrão veio aqui falar-me sobre você, quer que lhe dê mais trabalho
- Mais? Mas eu o senhor e o mano já se acabemo nessa terra e...
- Eu sei, mas é pra ver se suas mãos engrossam... Sua voz também é fina e não deveria ser mais... Com sua idade eu...
- Ara, já sei, já sei... Com minha idade já tinha voz de homem... Mas o que eu faço com a voz? Vou capinar pra engrossar também?
- Não seja malcriado. Talvez se falar menos mal criações ela engrosse. Amanha você vai capinar a sua parte e a parte do seu irmão, como o patrão mandou e sem choradeiras...

O menino saiu dali um tanto quanto cabisbaixo, talvez não mais porque ao longe viu Frederica na janela. Olhando ao longe, sem fixar os olhos em nada. Parecia descansar da leitura. Como o quarto dela era no segundo andar e a casa era azul, o que acabava se misturando com o céu, de onde Pedro olhava ela parecia voar. Logo atrás da casa, dando a impressão que estava logo atrás mesmo estava o sol. Quase se pondo. Mas ele parecia correr e aquela cena não duraria muito tempo, valeria a pena olhá-la mais um pouco. Valeria a pena para de respirar se fosse o caso. Pedro foi estendendo o braço na direção de Frederica e esse movimento certamente seria notado por ela, mas sua irmã apareceu ao lado e a pediu que fechasse a janela, encerrando a paisagem. Pedro baixou o braço e viu que o sol já tinha ido. Bastou-lhe aguardar a manhã de trabalho duro.

Sem demoras o dia nasceu, e o mesmo sol que lhe dera um presente na tarde passada viera agora lhe trazer o inicio de algo árduo. Levantou-se junto com seu pai e seu irmão como o de costume e foi encontrar os outros peões. Migrou sozinho e calado para o terreno que preparava todos os dias, mas que agora parecia ter dobrado de tamanho. Para todo o lado que olhasse havia apenas terra e mato e mal conseguia ver a ponta mais alta da casa de Frederica. O sol estava forte, e a cada enxadada que dava o fazia com força e um pouco de raiva. Para ver se os malditos calos cresciam logo.
Ao fim da manhã havia terminado metade do campo. Com as mãos vermelhas sentou a mesa. Mais dolorido do que orgulhoso das mesmas, é verdade. Mas quieto. Seu pai observava tudo com a mesma quietude, assim como seu irmão.
Dirigia-se para a retomada do trabalho quando viu que debaixo de uma árvore, um tanto distante, descansava Rica com seu livro a tira colo. Ela ficaria no seu campo de visão e estava de bom tamanho para aquele dia desgastante. A cada enxada dava uma olhada na moça que retribuía na mesma intensidade. Mas lá pelas tantas Pedro viu que estava sendo observado pelo patrão também e mais que isso viu que o mesmo se aproximava bem lentamente. Automaticamente aumentou as enxadadas e diminuiu os cuidados à moça.
O patrão se aproximou e disse calmamente:

- Se um peão de mão fina não serve pra trabalhar nas minhas terras o que te faz pensar que serve pra casar com minha filha?
Assustado Pedro respondeu:
- Eu to só trabalhando, senhor, longe de mim quer...
- Eu não sou cego, filho; respondeu já exaltado o patrão, é normal na sua idade cuidar as moças, mas é normal também que trabalhe e tenha calo nas mãos... Se não pode apertar minha mão como um homem como vai cuidar de minha filha? Vai deixar fazerem ela de gato e sapato? Hã?
Pedro ficou nervoso e começou a gaguejar. Deixou cair a enxada sobre o pé e se cortou e de tudo isso somado começou a chorar...
- Mais essa ainda? Um chorão? Vou falar com seu pai, não quero mais você aqui, vou trocá-lo por um peão de verdade!

Dito isso e dado as costas o patrão se vai e logo mais Pedro também iria... Seu pai tentou argumentar dizendo que Pedro trabalharia de graça até que engrossasse a voz e fosse um home de verdade, mas não adiantou. Ele queria Pedrinho fora dali até a o amanhecer... A noite não demorou a chegar e a essas alturas todos na fazenda já sabiam de tudo. Apesar de ser fraco aos serviços duros Pedro era um menino encantador, curioso, simples, inquieto e singelo. Frederica suspeitava de todas essas qualidades e todas lhe eram bem-vindas, porém não tinham mesmo uma aproximação para confirmá-las. O que chegava ao seu ouvido era que Pedro tinha mãos finas e não era dado ao trabalho. Mas algo lhe dizia ao pé do ouvido que não era verdade. Abriu a janela e viu ao longe na casa de Pedro a luz do lampião acesso e resolveu descer. Sorrateiramente atravessou o gramado e se pôs de baixo da janela a ouvir. Ouviu o choro da mãe de Pedro e as frases do pai dizendo que talvez na rua aprenda algo e volte para casa como um homem. Pode ouvir seu irmão se despedindo também.

Pedrinho saiu sozinho pela porta e foi em direção ao portão da saída cabisbaixo e muito triste. Com um assovio foi chamado por Frederica e quando notou sua presença atrás de uma árvore chegou a cair, espantado, como se tivesse visto um fantasma.

-Você aqui?
- Sim, o que aconteceu afinal porque te mandarem embora? Levante-se...
- Seu pai acha que não trabalho bem porque tenho mãos finas e não tenho voz grossa, acha perda de tempo me manter aqui e que sozinho na rua vou aprender a ser um homem de verdade...
- Meu pai é um grosso.
- Seu pai não deixa de estar certo, como vou proteger você e sustentá-la se não consigo apertar a mão dele?
- Pretendia me sustentar? Perguntou ela envergonhada...
- É... bem... Você sabe, eu...

Ela riu, lisonjeada e respondeu:

- Mas você não pode ficar na rua... Conheço um galpão perto da minha escola e você pode ficar lá uns dias, eu pego algo escondido e levo pra você comer...
- Mas não posso ficar lá para sempre...
- Só até você achar algo melhor, por favor... Vou sentir-me culpada se for assim e nunca mais voltar...
- Tudo bem...

Pedro instalou-se no tal galpão e ali esperava a comida que a menina lhe trazia nos intervalos. Certo dia ela apareceu com um livro nas mãos e ele questionou:

- Que tanto tem nesses livros que você carrega? O que são?
- Depende, esse é de matemática, sabe o que é?
- Não... Respondeu ele encabulado.
- É a ciência que estuda os números!
- Hum... Disse ele como quem não tivesse entendido nada...
- Há outros também de escritores famosos... Você sabe ler?
- Não, não sei não...
- Gostaria de aprender?
- Não, não sou pra isso não... Se eu tiver mão fina, voz fina e perder meu tempo aprendendo e ler meu pai me mata depois...
- Não seja bobo, sabendo ler você pode escrever uma carta para o seu pai depois, dizendo que esta bem, que esta trabalhando...
- Mas meu pai não sabe ler, ele...
- Ah, eu leio pra ele a carta... Você precisa saber ler e escrever, sim. Ponto final.

Pedro, embora contrariado obedeceu a moça, afinal era ela quem lhe trazia comida e sem ela era bem possível que ele já tivesse morrido de fome. Nos curtos intervalos que tinha ela lavava algumas frutas, pão e um livro, onde tentava explicar como as letras se uniam, formavam sons, e como formavam palavras. Frases, textos. Levou inclusive um pequeno quadro, onde ensinava melhor. Pedro já conseguia ler algumas poucas palavras e conseguiu também uma vaga de ajudante do porteiro da escola. Não tinha condições de pagar pelas aulas, então dali observava tudo que podia. Agradava-lhe muito a postura de um dos professores de Frederica, um homem distinto, alto, magro, com cara de intelectual. Concluiu que alguém assim certamente sabia ler e fazer muitas outras coisas pediu que Rica lhe ensinasse tudo que podia e a moça com certeza não se negou, fazia aquilo com prazer e foi vendo também que Pedro era muito inteligente. Pegava o conteúdo ensinado com facilidade. Em poucos meses mais, Pedro escreveu à sua família a primeira carta, com as mesmas mãos finas que um dia lhe fizerem ser expulso da fazenda. Rica lia em pé e em voz alta à família do menino poucas palavras, porém escritas por um pulso orgulhoso. O pai custou a se entregar e chorar, mas uma lagrima insistiu em cair e o denunciou. Na carta o menino agradecia ao pai pelas lições e que estava aprendendo a ser um homem, tirando a parte que envolvia Frederica contou tudo, sobre o trabalho junto ao porteiro e sobre o professor que admirava.
Foi uma comoção sem fim por parte da família, e intimamente por parte da moça também.

O ano letivo dela estava no fim, ficaria fadada a não ver Pedro por um tempo. Os dois criaram um vinculo muito belo e raro na maioria dos casais ditos “normais”. O da admiração. Ela o admirava pela vontade de saber e a entrega a tal. Ele a admirava pela dedicação e sabedoria, e porque não pela paciência. Afinal um amor não nasce de uma hora para a outra, mesmo que esteja predestinado a acontecer. Pedro sentia algo em seu peito por ela que não era mais capaz de conter, algo que precisava sair, que queimava seus peito e suas veias. Algo que correu em seu corpo por anos, talvez mais tempo que ele se considere um homem de verdade. Sentia algo que se não fosse dito ficaria trancado em sua garganta para sempre...

Ela viria pela ultima vez visitá-lo no ano na segunda-feira e era sexta. Pôs-se a escrever como um faminto devora um prato de comida. Comida por sinal que não sentiu falta nesse tempo. Tinha apenas um lampião como companheiro, visto que o porteiro da escola não ficava ali aos fins de semana. Não conhecia muitas palavras e não era necessário. Seu amor era puro e simples, palavras sofisticadas seriam mal vindas.

Frederica saiu de casa pesarosa por ser o ultimo dia do ano, que passara rápido, mas tinha sido o mais gratificante de sua vida. Tinha ela também um amor guardado no peito, amor que não poderia, embora quisesse, gritá-lo aos quatro ventos ou era capaz de ser expulsa de casa também. Um amor que conviveu quase que diariamente de forma muda durante a maioria do tempo, mas que em tempo faria o coração pulsar mais forte que qualquer aperto de mão. Pensando nisso ela chegou à escola, onde viu Pedro Mão Fina exausto sobre a palha empunhando um papel. Assustada ela questionou o que havia se passado. Com uma mão cheia de calos ele acariciou seu rosto e lendo respondeu com uma voz grave:

Sempre grato a ti eu serei por mais que o sol me castigue depois de vê-la voar.
Mesmo que exista mais palavras no mundo que eu possa estrelas contar.
Elas não serão suficientes para expressar o meu amor por ti, bela Frederica.
As palavras que me ensinaste serão as que eu sempre lembrarei.
As que aprendi sem ter que soletrar.
Escrevi dias a fio para agradecer-te e acabei por minhas mãos calejar.
E digo que nada no mundo me deu mais prazer, que aprender a te amar...



Fim!!!

Gabriel de Deus
El fuego volvió a visitarme, tio :O)

domingo, janeiro 31, 2010

Graças a você!

Oh,inspiração, minha inspiração. Meu anjo da guarda, minha vida. Desde quando não me chamava Gabriel você me acompanha.

Ajudou-me quando passei frio, fome e quando disso morri.
Quando fui uma pessoa boa e quando fui uma pessoa ruim.

Você vem e me diz coisas tão bonitas... Sempre quis me declarar pra você.
Gosto da forma que você chega, de mansinho, devagarzinho... e em pouco tempo não penso em outra coisa, até escrever.

Posso não te ver, e no fundo nem preciso. Sei que apesar de te imaginar tricolor, a inspiração não deve ter cor. Mas sei que é grande pra acompanhar tanta gente, tanta gente diferente.
Agradeço-te pelos amigos que agora se falam, por acompanhar os que estão em Curitiba, os que estão em Imbituba, em Porto Alegre e que, o mais importante de tudo, os que estarão sempre no nosso coração.

Obrigado por me apresentar outro amigo de todas as horas, o rap. Por acompanhar o Grêmio de 95, Mano Brown, Familia Sarará, Baltazar e a minha mãe que é a tua irmã gêmea encarnada. Gabi, Robson, Kim e Jorgett.

Se em vão mulheres batem à porta, não abrirei. Ficarei sozinho até que me aponte àquela que seguirá conosco.

Entrego-te minhas mãos de olhos fechados e meu coração como fonte. Deus te enviou em forma de fogo pra correr no meu sangue. Essa energia é clara e a vejo como eterna. Ajudarei aos que não te sentem e não te tocam ainda.
São esses que duvidam da existência do ar por não o verem. Há também quem não te veja ou sinta entre os dedos, mas também há os cegos de verdade.

Vejo-te como o vento, que é o ar que precisa ser visto e por isso entra em movimento. Não cansa até que bagunce seu cabelo e faça vc se mover.

O mal não me excita, o mal não me toca. Eu tenho a proteção de Deus na minha porta.

De minha parte, por hoje, findo esse texto. Com um sorriso no rosto porque sei que vai estar amanhã aqui quando eu acordar seja que hora for. Levará-me aos céus durante o sono, pegando-me pela mão, você e o Senhor.

La Inspiración camina com dios e juntos corren por mis venas, tios...

Gabriel del Fuego

sábado, janeiro 30, 2010

Correções...

Durante toda a semana marquei um horário pra voltar a correr e liberar esse caminhão de estresse que me incomodou nessas ultimas semans, mas sempre acontecia algo, tipo chuva, dor de cabeça, dor nos pés, etc. Quando acordei hoje de manhã e vi aquele dia lindo que fazia pensei que nada iria me impedir de correr, nada. Trabalhei as energias e como tinha acordado cedo fui dormir. Programei o telefone para despertar as 17:30 e as 17:29 acordei com o barulho da chuva que caia, e diga-se de passagem não era pouca. Pensei quase instantaneamente que não podia estar chovendo, me chateei, mas no mesmo minuto vi que entre a chuva haviam raios de sol e me recordei que quando uma meta é estipulada temos que fazer alguns sacrificios... Coloquei meus tênis e comecei a me alongar pra correr, independente de como o tempo se apresentasse, embora meio receioso de sair. Orei baixinho, botei uma musica pra tocar, que inclusive é a mesma que abre o blog, minha primeira postagem, chamada O Nascer do Sol... Me inspirei e saí. Com a música alta não ouvi que a chuva havia parado e o sol se fazia notavel por completo agora. O sol tratou de secar as ruas por onde corri também. O trajeto estava desenhado, como se nenhuma gota de agua tivesse caído ali. Deus abençoe o sol, meu anjo da guarda e meu trajeto. Corri cerca de oito quilometros literalmente agradecendo aos céus...

El sol tambien camina conmigo, tios... :)

terça-feira, setembro 08, 2009

Inverno Rigoroso

George chegou ao centro da cidade junto com o inverno. Com 44 anos, cabelos prateados, uma perna que era pouca coisa maior que a outra, uma mala já bastante gasta com no máximo duas mudas de roupa, barba por fazer e pouco dinheiro. É certo dizer que também chegou sem suas filhas, com quem brigou antes de sair de casa. Ele tentou, assim como fazia em sua casa antiga, ficar mudo e sisudo para chamar a atenção e conseguir o que queria, mas não entendia bem o que se passava naquela parte da cidade e tampouco os demais ligavam para seu rosto fechado. Demorou até conseguir um lugar para ficar e até lá morou em um beco estreito, onde dividia com uma senhora, um papelão e uma panela. A mulher não entendia um só murmúrio que saía da sua boca, então lhe ofereceu um cobertor e recebeu a confirmação com a cabeça. Ele tentava dizer para ela, ora com gestos, ora com palavras, que era um homem muito respeitado em seu antigo bairro, e que por causa de uma infelicidade acabara por ser assaltado, mas a velha senhora, que nada entendia, deu de ombros.
Um pequeno rapaz, que parecia ser filho daquela mulher, acordou-os e indicou que havia reaberto como era de costume no inicio do rigoroso inverno, um albergue a duas quadras dali e que eles poderiam ficar lá por um tempo. George, guiou-se pela expressão no rosto dos dois e julgando que seria algo bom seguiu-os, afinal o inverno realmente começa de forma muito forte e pelo menos teriam um abrigo. O albergue tinha muitos quartos, um terço para homens, um para mulheres e um terceiro para casais, lá também era servida comida ao meio-dia e um lanche à tarde. Todos tinham que estar dentro do local até às 19h ou então ficavam na rua.
George passou a dividir seu pequeno quarto com outros sete homens, todos na mesma faixa etária e com muito custo, um dos senhores conseguiu-lhe um emprego na cozinha do albergue. Um mês já se passara e sob o ponto de vista de todos no local era ele um homem comum, e a todos já tentara falar sobre sua vida no antigo quarteirão e como era conhecido e respeitado, porém poucos entendiam uma ou duas palavras, não lhe davam a devida atenção, ou ao menos a atenção que ele queria.
Com o passar do tempo ouviu-se muito falar o nome de um garoto de no máximo 15 anos de idade que, assim como George, fazia suas refeições e dormia no local. Esse tinha o olhar demasiado profundo e parado e embora tivesse o rosto fechado era amável com todos, e todos ali o admiravam muito, era como um amuleto ou talismã da casa. O rosto marcado pelas olheiras lhe aparentava ter mais idade do que realmente tinha e a cozinheira chefe fazia sempre um almoço especial para o menino, mais reforçado, até com especiarias que os demais não ganhavam e tampouco reclamavam, e que se ganhassem eram capazes de dá-las ao menino. Ele sempre foi gentil e educado, agradecendo os afagos e aos poucos com sua simpatia ganhando também a admiração de George, mas este não sabia bem o porquê de tudo isso.
Certa noite um dos homens que dividiam o quarto começou a falar sobre sua vida antes de chegar ali, mas quando George tentou entrar na conversa ninguém lhe deu a mínima e ele virou-se para a parede, enrolou-se em seu cobertor, porém não conseguia dormir. O mesmo homem que tinha iniciado o diálogo passou a falar sobre o menino, e como era exemplo para todos, pois trabalhava em dois lugares e tudo que ganhava dava à mãe que era doente, para que esta ajudasse também sua avó, que moravam num quarto tão pequeno que o próprio rapaz não pôde ali ficar. Quieto, George ouviu a tudo e no mais íntimo cômodo de sua solidão passou a pensar que o menino comparado a ele não era tão mais virtuoso, afinal. O menino teve por um tempo uma casa, e ele que morara na rua e dormia debaixo de um papelão? E ele que brigou com as filhas e teve que morar em um lugar desconhecido? Se ele é tão maduro e responsável gostaria de saber como agiria se sua mulher estivesse morrendo por falta de remédios ao seu lado e ele estivesse desempregado, pois há poucos empregos para pessoas da minha idade... E se as filhas chamassem-no de vagabundo e o culpasse por tudo? Duvido que suportasse essa pressão... Certamente essas pessoas que o bajulam não sabem da minha história, se o soubessem me bajulariam e me dariam feijão com bacon também!
Passou a crer que ninguém o bajulava porque era velho e já não era mais bonitinho como antes ou que tinha a mesma simpatia.
No outro dia estava tão mal-humorado e amargo que o clima na cozinha ficou pesado. Fatiou com força o bacon que faria parte do almoço do rapaz pensando que aquele agrado lhe pertencia. Olhou a todos com ira nos olhos, atirou facas e garfos sujos na pia com força, a ponto de os mesmos voarem longe e caírem no chão. Não abriu a boca nem para o rotineiro bom-dia, nem mesmo para os amigos de sempre ou para cozinheira-chefe. No momento em que as pessoas passaram a servir-se fez questão de ficar na bandeja do feijão, onde olhou feio para todos que passavam. No momento em que viu o menino, além de não responder ao seu bom-dia, serviu-lhe o mesmo feijão dos outros e fez uma expressão no rosto de quem gostaria que o menino retrucasse, mas ele não falou uma só palavra, virou as costas e foi para sua mesa, foi quando George gritou:
- Comerás o mesmo que todos aqui, meu jovem... Não és mais que ninguém, ouviu bem? A chefe da cozinha, assim como o rapaz, olhou-o com surpresa e então interviu: - Como assim? Não mesmo... Venha cá que vou completar seu prato... Onde já se viu...
George explodiu em si, ficou irado e com olhos raivosos. Jogou a bandeja no chão xingando a tudo e a todos, chutou colheres e facas para todos os lados e subiu as escadas em direção ao seu quarto, já sem seu avental. Como era o único que não tinha emprego fora do albergue ficou sozinho em seu quarto até a noite. Pensou em ficar como em sua casa, sisudo e calado até que alguém viesse lhe bajular para saber o que tinha se passado. Às vezes resmungava algo incompreensível com o nome do garoto no final da frase para chamar a atenção, mas ninguém o ouviu. O homem não saiu para o café no fim da tarde, tampouco saíra do quarto para tomar banho. Ficou ali até que os seus companheiros de quarto chegaram, falantes como sempre. Ele estava deitado virado para a parede, mas fez questão de agitar-se o suficiente para que notassem que estava acordado. Os homens não lhe dirigiram a palavra e foram dormir como de costume. Nesse momento ele decidiu que não trabalharia mais na cozinha do albergue, iria arrumar dois, três empregos se preciso durante o dia e mostrar para aqueles puxa-sacos de uma figa quem era o homem ali e que o garoto não sabia de nada... Decidiu acordar cedo e sair antes de todos, para que ninguém ficasse lhe fazendo perguntas sobre onde ia ou sobre o acontecido do almoço passado.
Porém o dia amanheceu mais frio que de costume... Chegou a levantar-se, mas olhou pela janela e não viu as calçadas, apenas neve e mais neve. Pensou em ir na manhã seguinte, afinal um dia assim não se via sempre. Voltou para a cama e ali ficou o dia todo, sem descer para almoçar, tomar café ou banhar-se. Ficou preparado caso alguém desse pela sua falta e viesse ver se estava bem, mas isso não aconteceu. O que o deixou mais irritado ainda e o motivou a acordar mais cedo ainda na manha seguinte para sair e procurar os três empregos, mas ao levantar viu que já havia pessoas de pé saindo à rua e o frio não diminuíra, então não achou conveniente ser visto, só queria que o vissem quando já estivesse trabalhando. Foi à cozinha, pegou alguns biscoitos mais outro cobertor no armário e voltou para a cama. Lá ficou novamente o dia todo, devidamente preparado caso alguém invadisse o quarto e lhe fizesse perguntas... Mas isso não aconteceu novamente. A manhã seguinte era sábado, o que precedia o domingo, e George não saiu de seus aposentos. Mas na segunda-feira sim... Sem dúvidas o dia mais gelado que já pôde presenciar, o que daria mais valor a sua conquista... Levantou cedo, todos em seu quarto ainda dormiam, estava sorridente... Mas seu rosto fechou quando ouviu um burburinho de vozes e choros no andar de baixo.
Desceu e viu que praticamente toda a população do albergue estava em frente ao quarto do menino, alguns pálidos, outros desolados... O menino não resistiu ao frio e veio a falecer. Viu que em um canto havia um grupo de pessoas que discutia que alguns o viram levando seu cobertor para a mãe uma noite antes, e também debatiam uma forma de ajudá-la já que o garoto era a sua única fonte de comida e remédios. Ficou mudo.
Voltou ao seu quarto, caso alguém precisasse de sua ajuda saberia onde encontrar-lhe. Ninguém precisou. Sozinho devaneou sobre o menino, que todos admiravam por sua morte heróica. Na noite seguinte, vendo que todos estavam abatidos e tristes ainda pela tragédia, e sentindo mais frio que na noite anterior, deixou propositalmente seu cobertor cair no chão. Dormiu sob um frio de menos 6 graus com o corpo descoberto. Amanheceu com a pele em tom azulado. Tremendo muito. Mas todos no quarto já haviam saído e não se ouvia nada na parte de baixo do albergue.
Mais um dia se passou e nessa noite esperou todos dormirem, escreveu um lindo bilhete onde pedia perdão sobre o que tinha feito com o menino, que também o admirava muito e contando um pouco da historia de sua vida, que também tinha sido sofrida e amarga. Deitou nu no chão, sem cobertas ou lençóis. Não resistiu ao frio e veio a falecer. Ao alvorecer, seu corpo estava praticamente congelado. Deitou com o bilhete na mão, onde seria fácil achá-lo caso alguém fosse procurá-lo... Ninguém o procurou.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Cinco Milhões

Quanto tempo conseguiria manter sua inspiração debaixo d’água?

Muitas vezes somos a inspiração que precisamos. Muitas vezes a fantasiamos na presença de outrem, isso é claro, falando de pessoas comuns como nós. Falo de nós porque não me atrevo a falar de gênios. Não posso falar de um mundo que desconheço. Não sei o que se passa nele.
Ao longo da história devem ter surgido Cinco milhões de gênios, somando ao todo cem milhões de histórias geniais, mas isso não importa, o importante é que desses Cinco milhões eu conheci apenas um e digo que já foi o bastante para uma vida.

O nome dele era Joe, era um homem alto de fronte larga e imponente, magro, elegante, o conheci quando trabalhamos e estudamos juntos na adolescência. Ele tinha o apelido de Cinco milhões, ganhou esse apelido dos outros rapazes porque vivia repetindo que ia ficar rico vendendo livros, que ia ser famosíssimo e ia vender Cinco milhões de livros, obviamente naquela época ninguém acreditava, talvez nem ele mesmo, mas o fato é de que uma forma ou de outra a historia de nossas vidas se encontraram algumas vezes, podendo eu, talvez único ser com tal privilegio, acompanhar a historia dele.
Se em uma conversa qualquer ele estivesse perto, sacava do bolso um papel e uma caneta e fazia anotações malucas, sem nexo, pelo menos pra mim. Ele as escrevia e sorria, as achando geniais. Por vezes ficava ansioso para lê-las a alguém.
Tinha idéias no mínimo exóticas e peculiares sobre algumas coisas, sobre alguns assuntos, talvez até precoces para a sua idade. Desde os 15 conversa de coisas com os outros garotos que só íamos conhecer com 30 anos ou mais, não era exatamente um homem à frente de seu tempo, mas carregava em sua face um ponto de interrogação autista, como se vivesse em outro mundo e às vezes voltava ao nosso para trazer novidades de outra órbita.

Era aficionado por mulheres, completamente fanático. Sempre dizia que eram as criações mais perfeitas de todas as perfeições criadas pelo criador perfeito, essa frase de efeito assim mesmo por ele dita ganhou os sorrisos mais lindos da escola e de nossa rua, mesmo que só estivesse sendo sincero, mesmo que os sorrisos ganhos não fossem seu objetivo, até porque não imaginava um mundo habitável sem que seu pensamento não fosse verdade. Costumava dizer que para se receberam de Deus o dom de dar a vida à outra pessoa não poderiam, ser tratadas como seres corriqueiros, eram anjos no sentido mais enfático que essa palavra possa carregar. Joe não era um Don Juan, mas o homenzinho tinha o dom das palavras, sabia às vezes colocá-las no lugar certo. Certo o suficiente pra chamar a atenção.

O que tinha de genial em alguns momentos compensava com ansiedade em outros e isso o atrapalhou muito ao longo da vida. Não era de se espantar que ao longo de sorrisos ganhos não saísse efetivamente com uma mulher e isso de fato aconteceu quando se apaixonou pela irmã de um amigo seu quando tinha 18 anos, uma moça gordinha, com sardas no rosto e um sorriso doce, meigo e inspirador. O pequeno Joe se inspirou a ponto de ver estrelas no lugar de sardas, a olhava como visse algo incrível e jamais visto, algo raro, quiçá que nunca mais fosse ver, ou mesmo que fosse ficar anos, décadas sem ver, como se só tivesse aquela chance de vê-la e dizer o que sentia.

- É incrível o que vejo impensável o que sinto, improvável como flutuo.

- O que é tão incrível, Joe? Respondeu a corada moça.

- As pessoas dizem que vivo em outro mundo e quando olho fundo em seus olhos é como visse de fora o mundo que cresci, pela primeira vez me vejo fora dele, não sabia que meu mundo é castanho como seu olhar, não sabia que quem o admira de fora o vê tão brilhante e encantador, eu vejo seu rosto como um céu de estrelas que protegem meu mundo, que não deixam que ninguém além de nós dois entrem nele, nem mesmo o sol e seus raios, nem mesmo a chuva, nem mesmo o ar. A sensação que tenho de amor é suficiente para manter-nos vivos.

Joe, mesmo sabendo que a lua é muda a ouvia quando a boca da meiga menina falava, com os mesmos olhos que um caipira vê o mar pela primeira vez ele olhava para os cabelos longos e lisos da menina e neles viu a vida, lembrou de como a água desce rua a baixo nos dias de chuva, lembrou como é bom o cheiro de terra molhada que ela propicia, eram cabelos comuns aos olhos de homens comuns, mas não para Joe, que e ao rimar universo castanho com cabelos e sardas, ganhou um convite a freqüentar a casa dos pais da enamorada moça. O pai da mesma, surpreso e inquieto com a presença do inspirado Joe pensava: O que aquele rapaz via demais na sua filha gordinha? Não era uma família abastada, ela não era linda, não era a primeira da classe. Mas a quem interessava isso além de Joe? Ninguém. Joe costumava dizer com propriedade que modelos se entendem com toureiros e não com poetas e que as mulheres com corpos lindos e sorrisos falsos davam inspiração para apenas uma ou duas poesias.

Certa vez na sala da casa de sua amada, após conciliar de forma única e perfeita joelhos e cotovelos numa frase mágica para elogiar seu corpo, o coração da sua musa explodiu e a forma mais prática de mostrar carinho para aquele gênio era expondo seu corpo nu, Joe não esperava ver o corpo despido da moça e ficou nervoso, e se entrasse alguém? Ela literalmente pulou em cima dele esperando frases e poemas de improviso sobre seu colo e sua volumosa barriga quando Joe ficou mudo, sua inspiração sumiu, dando lugar a uma ansiedade e nervosismo muito, mas muito maiores a seu valioso pensar. Joe falhou e não cumpriu sua função de homem aquela noite, noite que foi tomada de decepção da pequena Line, e do próprio Joe, porque não? Ele sabia o que era sexo, sabia que ele era feito por pessoas de sexo diferentes e sabia que ele e Line tinham sexos diferentes, mas não compreendia porque ela atravessou o samba estragando tudo!
Joe era um bom rapaz, criado em um lar tranqüilo, não falava em ter todas as mulheres do mundo, falava em apenas uma, sua musa, aquela que sustentaria sua inspiração até o ultimo dia de sua vida, aquela que seria a verdadeira responsável pelos cinco milhões. Por alguns dias Joe permaneceu calado e inquieto, parecia mesmo estar fora de órbita. Line o procurou algumas vezes, sem sucesso, mesmo para saber como se sentia, para tentar novamente, com mais calma, mas foi em vão, ele estava demasiadamente envergonhado.

Joe, não sabemos como, passou a acreditar que saberia quem era a mulher de sua vida quando após rimar coisas como pescoço e costelas de forma especial, ele não ficasse nervoso e pudesse realmente cumprir com suas obrigações. Assim Joe gastou sua inspiração com inúmeras mulheres, e na mesma medida que sua inspiração crescia e ficava cada vez mais incrível, seu nervosismo também. Conheceu, com vinte anos, uma mulher chamada Cruzênica. Esse nome nada inspirador para 9 entre 10 poetas era o bastante para Joe tirar da sua cartola cheia de improvisações frases inspiradas, rabiscadas em um papel e entregue às mãos da moça, afinal, como dizia Joe; atos singelos, doces, aliados a frases bem formadas são um passo e meio para ganhar o coração de uma mulher honrada, ora, que tipo de mulher honrada não daria valor a um pedaço de coração escrito em um papel? Certamente não a nova musa do nosso ingênuo Joe. Ela o achava demasiadamente meloso, chato, obsoleto, ela, logo ela que ganhara os versos mais belos que qualquer mulher já pode ter. Ingrata Cruzênica. Joe no mesmo dia que a conheceu, já em casa começou a escrever a história dos dois, como se já fossem um casal, criou personagens incríveis, criou o nome dos filhos, criou uma curta passagem para conhecer o pai de Cru, mesmo que o real pai da moça já tivesse morrido, pensou em manter a história em segredo até que a mesma estivesse findada, elaborou um conto de fadas como vida ao lado dela, criou tudo de forma perfeita, como poucos roteiristas de Hollywood escreveriam, uma linda, terna e doce historia de amor, com todos os ingredientes que uma precisa ter somado a um final feliz. Doou-se de corpo e alma naquilo. Iludido Joe. A moça já deixara claro que não o queria com tal compromisso, foi o mesmo que pedisse que o viajante Joe ancorasse seu coração em seu porto.
Uma noite após tantas insistências por parte dele, fez com que a moça se apiedasse de Joe e aceitasse um passeio no parque na manhã do dia seguinte. Naquela noite Joe não dormiu, preferiu pensar em coisas bonitas para ganhar o sorriso de Cru e por conseqüência, seu coração, afinal, não saberia se teria outra chance.
Já eram 4 horas da manhã e o nada inspirado Joe foi vencido pelo cansaço. Acordou no exato momento em que deveria estar no parque, que por sua vez, não era perto de sua casa. Apressou-se! Cada minuto que passava tinha apenas cinco segundos, Joe chegou ao parque em uma manhã linda de domingo, manhã poucas vezes vista por um homem apaixonado, palco perfeito para a sua fujona inspiração reaparecer, no caminho imaginou os raios do sol atravessando os cabelos de Cru. Pássaros cantarolando à sua volta, flores, grama, e a natureza em seu total esplendor. Joe seria capaz de ver nuvens em forma de corações naquela manhã, que palco mais perfeito um poeta precisaria? Mas o parque estava vazio, assim como o coração do nosso frustrado amigo Joe. Cru havia ido, esperado, esperado, esperado e se cansado de esperar pelo nosso impontual Joe, e foi, furiosa para casa. Durante dias não pensou em mais nada, Cru não atendia ao telefone, o que pensava ela? Que ele era um impostor. Como pensou ela um dia em sair com um homem assim? Joe não pensava, tampouco chegava perto de pensar que Cru não era a mulher dos cinco milhões.

Sem tirar Cru da cabeça, Joe resolve viajar, encontrei-o no aeroporto certa vez, voltando da Europa, em particular me contou que antes de Cru, não conseguiu ter relações com nenhuma mulher, pois nenhuma delas era a mulher dos cinco milhões, me contou como o céu, mesmo de dia se enchia de estrelas quando a via, e que ela, sim, era a mulher dos cinco malditos milhões, mas que ela tinha dormido demasiadamente justo no dia de conquistá-la de vez e ela não quis mais saber dele. Após isso em algumas andanças pelo velho continente, além de Moscou, Sevilla, Roma, Marseille e Paris, conheceu Sqrarvsova, Madalena, Rosa, Visage, Cândida e Morsélia, conquistou todas com olhares e palavras, mas no momento de realmente fazê-las ver estrelas, falhou! Como tirar Cru da cabeça? Como enganar aquelas mulheres? Quando já era constatado que não iría mesmo funcionar ele usava como artifício o fato de estar pensando em Cru e na mesma rapidez que ganhou o coração de Sqrarvsova, Madalena, Rosa, Visage, Cândida e Morsélia, ele as perdeu. Fiquei chocado e nada falei, não sabia o que falar. Não havia o que falar. Como falar a um homem que nunca havia conhecido internamente o corpo de uma mulher? Poetas são mesmo pessoas especiais. Que homem!

O tempo passou. Joe, já com 30 anos passou a tomar remédios para controlar a ansiedade, a todos que perguntavam, mesmo que por educação, como estava, começava a contar a historia de Cru, Sqrarvsova, Madalena, Rosa, Visage, Cândida e Morsélia. A maioria das pessoas dava de ombros, não se interessava, sempre é bom ouvir um poeta em seu apogeu, mas quem quer por perto um poeta depressivo e com sérios problemas de ereção? Aos poucos Joe passa a ser visto, não mais como gênio promissor, mas sim como piada para a cidade. Ele era colunista em periódico local e assim com as rugas pediam espaço em rosto jovem e deprimido ele perdia prestigio entre os leitores e por conseqüência entre os editores do jornal. Desempregado e morando sozinho, Joe não fazia mais a barba e pouco comia, passou a beber e assim ficou até os 40 anos, ultima vez em que nos encontramos, novamente no aeroporto. Porém ao invés de voltar de passeio de outro continente, Joe parecia ter firmado residência entre os mendigos locais. O vi, perguntei como estava, e quando ouvi meia dúzia de alucinações, virei as costas e saí, era difícil pra eu ver o pedinte Joe daquele jeito. Ele disse a vida toda coisas que disse no máximo duas vezes à minha mulher. Era pra mim um ídolo de infância.
Mas o destino guardou uma surpresa para o embriagado e desesperançoso Joe. Eis que, curiosamente, em uma manhã de sol como aquela, há 20 anos atrás, Cru aparece com se em uma miragem em sua frente, embora penosa em vê-lo naquele estado o leva para casa e pede perdão, diz que quando nova não dava valor a verdadeiras provas de amor, diz coisas lindas a Joe que, voltando à nossa órbita parecia não acreditar no que via e tampouco no que ouvia, Cru parecia mais linda que antes, e mais esperta também, afinal veio resgatá-lo do limbo, do purgatório que passava por causa do amor puro e inocente que sentia por ela. Era o um final mais perfeito e redentório que aquele amor de 20 anos atrás, Joe voltaria a escrever, seria fantástico! Deixaria de ser piada, passaria a ser respeitado novamente, deixou de sentir vergonha de olhar para o sol e para a lua, para os pássaros, era perfeito. Que final mais lindo do que ser resgatado por sua própria musa das profundezas de um calabouço chamado depressão? Tudo fazia sentido. Fez planos para a sua primeira vez, pensou em como seria bom entregar-se de corpo e alma a uma mulher e dar-lhe 40 anos de carinhos guardados, odiava a palavra sexo, fazer amor sempre foi seu objetivo, seu scopo. Eis que se casam, Joe faz uma declaração linda durante a cerimônia, emocionando a todos, não houve uma santa alma viva que não tivesse chorado aquela noite no casório.

Disseram alguns presentes que inclusive o padre teve dificuldades em concluir a cerimônia devido à emoção. A tão aparentemente tardia e esperada lua de mel chega, Joe agradece aos céus por esse momento, finalmente era feliz ao lado de Cru. Mas a noite chega e com ela seus mistérios, os planos que nosso sonhador e ansioso Joe fizera passaram frente a seus olhos a 400km por hora, rápido o suficiente para deixá-lo tonto e nervoso. Inquieto Joe! Não sabe onde colocar as mãos, não sabe quais botões apertar. Na noite mais esperada de sua vida Joe falha novamente. Mas o que é uma noite para quem terá o resto da vida? O que é uma noite para quem já esperou por toda a vida? Joe fica casado com Cru durante 15 anos, sem sequer tocar nas partes intimas de sua amada. Aos 60 anos, a frustração e uma galopante pneumonia levam Cru da presença de nosso, não menos ativo poeta. Ele faz um discurso lindo no enterro de sua musa mor.
O pesaroso Joe fica na casa, morando sozinho. Pensando, não em como alguém que vive a vida por um amor e o teve por 15 anos não conheceu o ato mais intenso desse sentimento, mas como uma vida foi pouco para viver por Cru.
Eis que Joe não espera por mais uma peripécia do destino quando aos 62 anos passeia só, procurando um centavo de inspiração no parque onde há 42 anos deveria ter encontrado Cru, o nosso amigo e já míope Joe sente uma presença ao seu lado, pelo harmonioso cheiro, viu que se tratava de uma mulher, muito bem trajada, porte elegante, sorriso cativante falando de leve em seu ouvido palavras que conhecia, porém sua memória um tanto lenta não o deixou perceber na hora de onde. Joe, já de óculos, levanta seus cansados olhos e reconhece as sardas naquele rosto, e novamente reconhece o universo nos olhos de Line. Seu primeiro e não menos desdenhado amor. Line sorri e diz:

- Após 44 anos de cartas não respondidas, de telefonemas ignorados, encontrei você, Joe. Sempre tive a esperança de encontrar-te, aos risos dos incrédulos que debochavam de meu amor e paciência dou como resposta meu sorriso ao te ver. 44 anos guardando um pedaço de papel onde descreveu para mim o mundo que vivia, seu mundo castanho. 44 anos olhando todo santo dia meus olhos no espelho, querendo conhecê-lo de perto. Tentei, em vão, adentrar nele a força, mas garanto-te que aprendi como se entra no coração de um poeta iluminado como você, depois de bater contra o espelho várias vezes querendo entrar e de me punir por aquela noite em minha casa, me pus a esperar-te, não sei como o amor pode gerar a paciência de 44 longos anos, mas aqui estou como a mais viva prova de amor que posso lhe dar.

Joe se emociona e como se tivesse quinze anos e responde:

- Assim como és a prova viva de paciência e amor, sou a prova viva de que por mais que as pessoas digam que sou perfeito como poeta não o serei sem ti, nada sois sem alma, nada sou sem a inspiração que me trazes. Não me penitencio por ter te deixado, tampouco por ser elo do seu sofrimento por todos esses anos. Meu corpo traz por dentro cicatrizes enormes que o tempo insistiu em me dar, e zelo por cada uma delas, sem elas não aprenderia a dar valor ao teu amor nem em 44 mil primaveras, sem esses anos de sofrimento de ambos nunca veria que tua meditação a mim sustentaria anos de inspiração que dediquei a outras mulheres. Hoje me vejo liberto de ilusões, o sorriso que me emprestas é minha alforria do mundo dos mortais, passo a partir de hoje viver por cada segundo que passar a teu lado. Cada sílaba que meu fraco corpo disser será em teu nome e honra minha amada.

Line pede a mão de nosso surpreso amigo Joe em casamento, que de primeira refuga, pensa em Cru, pensa que seria como traí-la, mas pensa que viveu por uma pessoa, assim como Line viveu por ele. Não queria que Line passasse pelo que passou. Aceita o pedido no mesmo segundo que uma lágrima desce do rosto sardento da emocionada mulher.

Toda a cidade convidada, uma festa mais linda e contagiante que no primeiro casamento, Joe, fica novamente esperançoso, não tinha como dar errado dessa vez, não dessa vez. Para a lua de mel, nosso precavido e com poucos conhecimentos de procedimentos geriátricos Joe, toma quase que por inteiro um vidro de remédios para a ansiedade. Durantes os festejos Joe está animado como nunca estivera em 62 anos de vida, dança, pula, canta suas poesias com um menino. Certamente a noite mais feliz da vida dele e de Line. Do contrário da primeira vez, onde seu coração batia como um cavalo de corrida, o coração de Joe batia tranqüilo, sereno e certo de uma noite perfeita e inspiradora. Joe em uma fração de segundos pensou e deduziu que Line realmente era a mulher dos cinco milhões. Que mulher mais certa enriqueceria um homem senão alguém que espera um homem por 44 anos? Joe não conseguia pensar em ninguém assim, se da conta que não precisaria mais dos remédios que havia tomado. Que história! Talvez até com uma autobiografia vendesse cinco milhões. Era, finalmente, após 62 anos um homem feliz. Após um casamento regado de amor e emoções, já a caminho da lua de mel, Joe, se sente aliviado, realizado.

Com naturalidade, passa a conhecer intimamente a mulher de sua vida, a mulher dos badalados, sonhados e não menos comentados milhões, Joe a beija e a despe na cama como se tivesse feito isso a vida toda, com calma, como se conhecesse seu corpo, como se nascera para aquilo.
Ficou por alguns instantes admirando seu corpo, cada centímetro dele, Line, que afinal também havia se guardado para Joe, é tomada de uma enorme emoção, e com os olhos fechados pergunta se Joe ouve a música, se ouve a linda sinfonia que os cercava, um coral de anjos amigos cantavam melodias suaves e doces, Joe diz que sim ao mesmo tempo que acariciava, beijava, e loucamente tocava cada curva do seu corpo. O nunca tão inspirado Joe levou Line as alturas com palavras doces, com beijos quentes, dizendo:

- Eu a amo, vejo agora que sempre a amei, vejo agora que toda minha vida foi dedica ao amor mais perfeito e puro que já existiu, nem mesmo todos os Deuses poderiam pensar em uma história como a nossa, minha amada. És e será eternamente meu ar, meus pés, o alimento de minha alma. És a fonte de amor de um universo castanho que te nasceu por ti e por ti se manterá. Ouça os anjos a nossa volta bendizendo nossa união, nosso amor cabal. Quero conservar essa paz assim como seu corpo em meus braços, não apenas hoje, mas até que tenhamos tocado com nossa mão todas as estrelas que há no céu, até que se rendam ao nosso carinho, és sem duvida a mulher dos Cinco milhões.

Line não compreendeu a última parte, mas amou ouvir aquilo e respondeu:

- Também o amo, meu querido poeta, sempre tive certeza de seu amor e por isso o esperei, ouvir-te e ter-te é sem dúvida o maior prazer que podes me proporcionar, darei seu nome a uma das estrelas que me faz ver quando dizes que me ama, diga mais, diga...


Pediu que seu amado dissesse mais, que continuasse... Mas eis que a emoção e o destino implacável e porque não improvável e estraga prazeres entra nova e derradeiramente na vida de Joe parando seu coração lentamente, bem lentamente... Levando-o da companhia de sua amada.
Aquelas tinham sido as ultimas palavras do falecido Joe. Que gora não poderia mais dizer o que nascera para dizer, amar do jeito sabia amar. Não poderia mais arrebatar suspiros ou mesmo paixões... Foi-se feliz... Mesmo sem seus Cinco Milhões.

Gabriel de Deus / Pássaro