terça-feira, setembro 08, 2009

Inverno Rigoroso

George chegou ao centro da cidade junto com o inverno. Com 44 anos, cabelos prateados, uma perna que era pouca coisa maior que a outra, uma mala já bastante gasta com no máximo duas mudas de roupa, barba por fazer e pouco dinheiro. É certo dizer que também chegou sem suas filhas, com quem brigou antes de sair de casa. Ele tentou, assim como fazia em sua casa antiga, ficar mudo e sisudo para chamar a atenção e conseguir o que queria, mas não entendia bem o que se passava naquela parte da cidade e tampouco os demais ligavam para seu rosto fechado. Demorou até conseguir um lugar para ficar e até lá morou em um beco estreito, onde dividia com uma senhora, um papelão e uma panela. A mulher não entendia um só murmúrio que saía da sua boca, então lhe ofereceu um cobertor e recebeu a confirmação com a cabeça. Ele tentava dizer para ela, ora com gestos, ora com palavras, que era um homem muito respeitado em seu antigo bairro, e que por causa de uma infelicidade acabara por ser assaltado, mas a velha senhora, que nada entendia, deu de ombros.
Um pequeno rapaz, que parecia ser filho daquela mulher, acordou-os e indicou que havia reaberto como era de costume no inicio do rigoroso inverno, um albergue a duas quadras dali e que eles poderiam ficar lá por um tempo. George, guiou-se pela expressão no rosto dos dois e julgando que seria algo bom seguiu-os, afinal o inverno realmente começa de forma muito forte e pelo menos teriam um abrigo. O albergue tinha muitos quartos, um terço para homens, um para mulheres e um terceiro para casais, lá também era servida comida ao meio-dia e um lanche à tarde. Todos tinham que estar dentro do local até às 19h ou então ficavam na rua.
George passou a dividir seu pequeno quarto com outros sete homens, todos na mesma faixa etária e com muito custo, um dos senhores conseguiu-lhe um emprego na cozinha do albergue. Um mês já se passara e sob o ponto de vista de todos no local era ele um homem comum, e a todos já tentara falar sobre sua vida no antigo quarteirão e como era conhecido e respeitado, porém poucos entendiam uma ou duas palavras, não lhe davam a devida atenção, ou ao menos a atenção que ele queria.
Com o passar do tempo ouviu-se muito falar o nome de um garoto de no máximo 15 anos de idade que, assim como George, fazia suas refeições e dormia no local. Esse tinha o olhar demasiado profundo e parado e embora tivesse o rosto fechado era amável com todos, e todos ali o admiravam muito, era como um amuleto ou talismã da casa. O rosto marcado pelas olheiras lhe aparentava ter mais idade do que realmente tinha e a cozinheira chefe fazia sempre um almoço especial para o menino, mais reforçado, até com especiarias que os demais não ganhavam e tampouco reclamavam, e que se ganhassem eram capazes de dá-las ao menino. Ele sempre foi gentil e educado, agradecendo os afagos e aos poucos com sua simpatia ganhando também a admiração de George, mas este não sabia bem o porquê de tudo isso.
Certa noite um dos homens que dividiam o quarto começou a falar sobre sua vida antes de chegar ali, mas quando George tentou entrar na conversa ninguém lhe deu a mínima e ele virou-se para a parede, enrolou-se em seu cobertor, porém não conseguia dormir. O mesmo homem que tinha iniciado o diálogo passou a falar sobre o menino, e como era exemplo para todos, pois trabalhava em dois lugares e tudo que ganhava dava à mãe que era doente, para que esta ajudasse também sua avó, que moravam num quarto tão pequeno que o próprio rapaz não pôde ali ficar. Quieto, George ouviu a tudo e no mais íntimo cômodo de sua solidão passou a pensar que o menino comparado a ele não era tão mais virtuoso, afinal. O menino teve por um tempo uma casa, e ele que morara na rua e dormia debaixo de um papelão? E ele que brigou com as filhas e teve que morar em um lugar desconhecido? Se ele é tão maduro e responsável gostaria de saber como agiria se sua mulher estivesse morrendo por falta de remédios ao seu lado e ele estivesse desempregado, pois há poucos empregos para pessoas da minha idade... E se as filhas chamassem-no de vagabundo e o culpasse por tudo? Duvido que suportasse essa pressão... Certamente essas pessoas que o bajulam não sabem da minha história, se o soubessem me bajulariam e me dariam feijão com bacon também!
Passou a crer que ninguém o bajulava porque era velho e já não era mais bonitinho como antes ou que tinha a mesma simpatia.
No outro dia estava tão mal-humorado e amargo que o clima na cozinha ficou pesado. Fatiou com força o bacon que faria parte do almoço do rapaz pensando que aquele agrado lhe pertencia. Olhou a todos com ira nos olhos, atirou facas e garfos sujos na pia com força, a ponto de os mesmos voarem longe e caírem no chão. Não abriu a boca nem para o rotineiro bom-dia, nem mesmo para os amigos de sempre ou para cozinheira-chefe. No momento em que as pessoas passaram a servir-se fez questão de ficar na bandeja do feijão, onde olhou feio para todos que passavam. No momento em que viu o menino, além de não responder ao seu bom-dia, serviu-lhe o mesmo feijão dos outros e fez uma expressão no rosto de quem gostaria que o menino retrucasse, mas ele não falou uma só palavra, virou as costas e foi para sua mesa, foi quando George gritou:
- Comerás o mesmo que todos aqui, meu jovem... Não és mais que ninguém, ouviu bem? A chefe da cozinha, assim como o rapaz, olhou-o com surpresa e então interviu: - Como assim? Não mesmo... Venha cá que vou completar seu prato... Onde já se viu...
George explodiu em si, ficou irado e com olhos raivosos. Jogou a bandeja no chão xingando a tudo e a todos, chutou colheres e facas para todos os lados e subiu as escadas em direção ao seu quarto, já sem seu avental. Como era o único que não tinha emprego fora do albergue ficou sozinho em seu quarto até a noite. Pensou em ficar como em sua casa, sisudo e calado até que alguém viesse lhe bajular para saber o que tinha se passado. Às vezes resmungava algo incompreensível com o nome do garoto no final da frase para chamar a atenção, mas ninguém o ouviu. O homem não saiu para o café no fim da tarde, tampouco saíra do quarto para tomar banho. Ficou ali até que os seus companheiros de quarto chegaram, falantes como sempre. Ele estava deitado virado para a parede, mas fez questão de agitar-se o suficiente para que notassem que estava acordado. Os homens não lhe dirigiram a palavra e foram dormir como de costume. Nesse momento ele decidiu que não trabalharia mais na cozinha do albergue, iria arrumar dois, três empregos se preciso durante o dia e mostrar para aqueles puxa-sacos de uma figa quem era o homem ali e que o garoto não sabia de nada... Decidiu acordar cedo e sair antes de todos, para que ninguém ficasse lhe fazendo perguntas sobre onde ia ou sobre o acontecido do almoço passado.
Porém o dia amanheceu mais frio que de costume... Chegou a levantar-se, mas olhou pela janela e não viu as calçadas, apenas neve e mais neve. Pensou em ir na manhã seguinte, afinal um dia assim não se via sempre. Voltou para a cama e ali ficou o dia todo, sem descer para almoçar, tomar café ou banhar-se. Ficou preparado caso alguém desse pela sua falta e viesse ver se estava bem, mas isso não aconteceu. O que o deixou mais irritado ainda e o motivou a acordar mais cedo ainda na manha seguinte para sair e procurar os três empregos, mas ao levantar viu que já havia pessoas de pé saindo à rua e o frio não diminuíra, então não achou conveniente ser visto, só queria que o vissem quando já estivesse trabalhando. Foi à cozinha, pegou alguns biscoitos mais outro cobertor no armário e voltou para a cama. Lá ficou novamente o dia todo, devidamente preparado caso alguém invadisse o quarto e lhe fizesse perguntas... Mas isso não aconteceu novamente. A manhã seguinte era sábado, o que precedia o domingo, e George não saiu de seus aposentos. Mas na segunda-feira sim... Sem dúvidas o dia mais gelado que já pôde presenciar, o que daria mais valor a sua conquista... Levantou cedo, todos em seu quarto ainda dormiam, estava sorridente... Mas seu rosto fechou quando ouviu um burburinho de vozes e choros no andar de baixo.
Desceu e viu que praticamente toda a população do albergue estava em frente ao quarto do menino, alguns pálidos, outros desolados... O menino não resistiu ao frio e veio a falecer. Viu que em um canto havia um grupo de pessoas que discutia que alguns o viram levando seu cobertor para a mãe uma noite antes, e também debatiam uma forma de ajudá-la já que o garoto era a sua única fonte de comida e remédios. Ficou mudo.
Voltou ao seu quarto, caso alguém precisasse de sua ajuda saberia onde encontrar-lhe. Ninguém precisou. Sozinho devaneou sobre o menino, que todos admiravam por sua morte heróica. Na noite seguinte, vendo que todos estavam abatidos e tristes ainda pela tragédia, e sentindo mais frio que na noite anterior, deixou propositalmente seu cobertor cair no chão. Dormiu sob um frio de menos 6 graus com o corpo descoberto. Amanheceu com a pele em tom azulado. Tremendo muito. Mas todos no quarto já haviam saído e não se ouvia nada na parte de baixo do albergue.
Mais um dia se passou e nessa noite esperou todos dormirem, escreveu um lindo bilhete onde pedia perdão sobre o que tinha feito com o menino, que também o admirava muito e contando um pouco da historia de sua vida, que também tinha sido sofrida e amarga. Deitou nu no chão, sem cobertas ou lençóis. Não resistiu ao frio e veio a falecer. Ao alvorecer, seu corpo estava praticamente congelado. Deitou com o bilhete na mão, onde seria fácil achá-lo caso alguém fosse procurá-lo... Ninguém o procurou.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Cinco Milhões

Quanto tempo conseguiria manter sua inspiração debaixo d’água?

Muitas vezes somos a inspiração que precisamos. Muitas vezes a fantasiamos na presença de outrem, isso é claro, falando de pessoas comuns como nós. Falo de nós porque não me atrevo a falar de gênios. Não posso falar de um mundo que desconheço. Não sei o que se passa nele.
Ao longo da história devem ter surgido Cinco milhões de gênios, somando ao todo cem milhões de histórias geniais, mas isso não importa, o importante é que desses Cinco milhões eu conheci apenas um e digo que já foi o bastante para uma vida.

O nome dele era Joe, era um homem alto de fronte larga e imponente, magro, elegante, o conheci quando trabalhamos e estudamos juntos na adolescência. Ele tinha o apelido de Cinco milhões, ganhou esse apelido dos outros rapazes porque vivia repetindo que ia ficar rico vendendo livros, que ia ser famosíssimo e ia vender Cinco milhões de livros, obviamente naquela época ninguém acreditava, talvez nem ele mesmo, mas o fato é de que uma forma ou de outra a historia de nossas vidas se encontraram algumas vezes, podendo eu, talvez único ser com tal privilegio, acompanhar a historia dele.
Se em uma conversa qualquer ele estivesse perto, sacava do bolso um papel e uma caneta e fazia anotações malucas, sem nexo, pelo menos pra mim. Ele as escrevia e sorria, as achando geniais. Por vezes ficava ansioso para lê-las a alguém.
Tinha idéias no mínimo exóticas e peculiares sobre algumas coisas, sobre alguns assuntos, talvez até precoces para a sua idade. Desde os 15 conversa de coisas com os outros garotos que só íamos conhecer com 30 anos ou mais, não era exatamente um homem à frente de seu tempo, mas carregava em sua face um ponto de interrogação autista, como se vivesse em outro mundo e às vezes voltava ao nosso para trazer novidades de outra órbita.

Era aficionado por mulheres, completamente fanático. Sempre dizia que eram as criações mais perfeitas de todas as perfeições criadas pelo criador perfeito, essa frase de efeito assim mesmo por ele dita ganhou os sorrisos mais lindos da escola e de nossa rua, mesmo que só estivesse sendo sincero, mesmo que os sorrisos ganhos não fossem seu objetivo, até porque não imaginava um mundo habitável sem que seu pensamento não fosse verdade. Costumava dizer que para se receberam de Deus o dom de dar a vida à outra pessoa não poderiam, ser tratadas como seres corriqueiros, eram anjos no sentido mais enfático que essa palavra possa carregar. Joe não era um Don Juan, mas o homenzinho tinha o dom das palavras, sabia às vezes colocá-las no lugar certo. Certo o suficiente pra chamar a atenção.

O que tinha de genial em alguns momentos compensava com ansiedade em outros e isso o atrapalhou muito ao longo da vida. Não era de se espantar que ao longo de sorrisos ganhos não saísse efetivamente com uma mulher e isso de fato aconteceu quando se apaixonou pela irmã de um amigo seu quando tinha 18 anos, uma moça gordinha, com sardas no rosto e um sorriso doce, meigo e inspirador. O pequeno Joe se inspirou a ponto de ver estrelas no lugar de sardas, a olhava como visse algo incrível e jamais visto, algo raro, quiçá que nunca mais fosse ver, ou mesmo que fosse ficar anos, décadas sem ver, como se só tivesse aquela chance de vê-la e dizer o que sentia.

- É incrível o que vejo impensável o que sinto, improvável como flutuo.

- O que é tão incrível, Joe? Respondeu a corada moça.

- As pessoas dizem que vivo em outro mundo e quando olho fundo em seus olhos é como visse de fora o mundo que cresci, pela primeira vez me vejo fora dele, não sabia que meu mundo é castanho como seu olhar, não sabia que quem o admira de fora o vê tão brilhante e encantador, eu vejo seu rosto como um céu de estrelas que protegem meu mundo, que não deixam que ninguém além de nós dois entrem nele, nem mesmo o sol e seus raios, nem mesmo a chuva, nem mesmo o ar. A sensação que tenho de amor é suficiente para manter-nos vivos.

Joe, mesmo sabendo que a lua é muda a ouvia quando a boca da meiga menina falava, com os mesmos olhos que um caipira vê o mar pela primeira vez ele olhava para os cabelos longos e lisos da menina e neles viu a vida, lembrou de como a água desce rua a baixo nos dias de chuva, lembrou como é bom o cheiro de terra molhada que ela propicia, eram cabelos comuns aos olhos de homens comuns, mas não para Joe, que e ao rimar universo castanho com cabelos e sardas, ganhou um convite a freqüentar a casa dos pais da enamorada moça. O pai da mesma, surpreso e inquieto com a presença do inspirado Joe pensava: O que aquele rapaz via demais na sua filha gordinha? Não era uma família abastada, ela não era linda, não era a primeira da classe. Mas a quem interessava isso além de Joe? Ninguém. Joe costumava dizer com propriedade que modelos se entendem com toureiros e não com poetas e que as mulheres com corpos lindos e sorrisos falsos davam inspiração para apenas uma ou duas poesias.

Certa vez na sala da casa de sua amada, após conciliar de forma única e perfeita joelhos e cotovelos numa frase mágica para elogiar seu corpo, o coração da sua musa explodiu e a forma mais prática de mostrar carinho para aquele gênio era expondo seu corpo nu, Joe não esperava ver o corpo despido da moça e ficou nervoso, e se entrasse alguém? Ela literalmente pulou em cima dele esperando frases e poemas de improviso sobre seu colo e sua volumosa barriga quando Joe ficou mudo, sua inspiração sumiu, dando lugar a uma ansiedade e nervosismo muito, mas muito maiores a seu valioso pensar. Joe falhou e não cumpriu sua função de homem aquela noite, noite que foi tomada de decepção da pequena Line, e do próprio Joe, porque não? Ele sabia o que era sexo, sabia que ele era feito por pessoas de sexo diferentes e sabia que ele e Line tinham sexos diferentes, mas não compreendia porque ela atravessou o samba estragando tudo!
Joe era um bom rapaz, criado em um lar tranqüilo, não falava em ter todas as mulheres do mundo, falava em apenas uma, sua musa, aquela que sustentaria sua inspiração até o ultimo dia de sua vida, aquela que seria a verdadeira responsável pelos cinco milhões. Por alguns dias Joe permaneceu calado e inquieto, parecia mesmo estar fora de órbita. Line o procurou algumas vezes, sem sucesso, mesmo para saber como se sentia, para tentar novamente, com mais calma, mas foi em vão, ele estava demasiadamente envergonhado.

Joe, não sabemos como, passou a acreditar que saberia quem era a mulher de sua vida quando após rimar coisas como pescoço e costelas de forma especial, ele não ficasse nervoso e pudesse realmente cumprir com suas obrigações. Assim Joe gastou sua inspiração com inúmeras mulheres, e na mesma medida que sua inspiração crescia e ficava cada vez mais incrível, seu nervosismo também. Conheceu, com vinte anos, uma mulher chamada Cruzênica. Esse nome nada inspirador para 9 entre 10 poetas era o bastante para Joe tirar da sua cartola cheia de improvisações frases inspiradas, rabiscadas em um papel e entregue às mãos da moça, afinal, como dizia Joe; atos singelos, doces, aliados a frases bem formadas são um passo e meio para ganhar o coração de uma mulher honrada, ora, que tipo de mulher honrada não daria valor a um pedaço de coração escrito em um papel? Certamente não a nova musa do nosso ingênuo Joe. Ela o achava demasiadamente meloso, chato, obsoleto, ela, logo ela que ganhara os versos mais belos que qualquer mulher já pode ter. Ingrata Cruzênica. Joe no mesmo dia que a conheceu, já em casa começou a escrever a história dos dois, como se já fossem um casal, criou personagens incríveis, criou o nome dos filhos, criou uma curta passagem para conhecer o pai de Cru, mesmo que o real pai da moça já tivesse morrido, pensou em manter a história em segredo até que a mesma estivesse findada, elaborou um conto de fadas como vida ao lado dela, criou tudo de forma perfeita, como poucos roteiristas de Hollywood escreveriam, uma linda, terna e doce historia de amor, com todos os ingredientes que uma precisa ter somado a um final feliz. Doou-se de corpo e alma naquilo. Iludido Joe. A moça já deixara claro que não o queria com tal compromisso, foi o mesmo que pedisse que o viajante Joe ancorasse seu coração em seu porto.
Uma noite após tantas insistências por parte dele, fez com que a moça se apiedasse de Joe e aceitasse um passeio no parque na manhã do dia seguinte. Naquela noite Joe não dormiu, preferiu pensar em coisas bonitas para ganhar o sorriso de Cru e por conseqüência, seu coração, afinal, não saberia se teria outra chance.
Já eram 4 horas da manhã e o nada inspirado Joe foi vencido pelo cansaço. Acordou no exato momento em que deveria estar no parque, que por sua vez, não era perto de sua casa. Apressou-se! Cada minuto que passava tinha apenas cinco segundos, Joe chegou ao parque em uma manhã linda de domingo, manhã poucas vezes vista por um homem apaixonado, palco perfeito para a sua fujona inspiração reaparecer, no caminho imaginou os raios do sol atravessando os cabelos de Cru. Pássaros cantarolando à sua volta, flores, grama, e a natureza em seu total esplendor. Joe seria capaz de ver nuvens em forma de corações naquela manhã, que palco mais perfeito um poeta precisaria? Mas o parque estava vazio, assim como o coração do nosso frustrado amigo Joe. Cru havia ido, esperado, esperado, esperado e se cansado de esperar pelo nosso impontual Joe, e foi, furiosa para casa. Durante dias não pensou em mais nada, Cru não atendia ao telefone, o que pensava ela? Que ele era um impostor. Como pensou ela um dia em sair com um homem assim? Joe não pensava, tampouco chegava perto de pensar que Cru não era a mulher dos cinco milhões.

Sem tirar Cru da cabeça, Joe resolve viajar, encontrei-o no aeroporto certa vez, voltando da Europa, em particular me contou que antes de Cru, não conseguiu ter relações com nenhuma mulher, pois nenhuma delas era a mulher dos cinco milhões, me contou como o céu, mesmo de dia se enchia de estrelas quando a via, e que ela, sim, era a mulher dos cinco malditos milhões, mas que ela tinha dormido demasiadamente justo no dia de conquistá-la de vez e ela não quis mais saber dele. Após isso em algumas andanças pelo velho continente, além de Moscou, Sevilla, Roma, Marseille e Paris, conheceu Sqrarvsova, Madalena, Rosa, Visage, Cândida e Morsélia, conquistou todas com olhares e palavras, mas no momento de realmente fazê-las ver estrelas, falhou! Como tirar Cru da cabeça? Como enganar aquelas mulheres? Quando já era constatado que não iría mesmo funcionar ele usava como artifício o fato de estar pensando em Cru e na mesma rapidez que ganhou o coração de Sqrarvsova, Madalena, Rosa, Visage, Cândida e Morsélia, ele as perdeu. Fiquei chocado e nada falei, não sabia o que falar. Não havia o que falar. Como falar a um homem que nunca havia conhecido internamente o corpo de uma mulher? Poetas são mesmo pessoas especiais. Que homem!

O tempo passou. Joe, já com 30 anos passou a tomar remédios para controlar a ansiedade, a todos que perguntavam, mesmo que por educação, como estava, começava a contar a historia de Cru, Sqrarvsova, Madalena, Rosa, Visage, Cândida e Morsélia. A maioria das pessoas dava de ombros, não se interessava, sempre é bom ouvir um poeta em seu apogeu, mas quem quer por perto um poeta depressivo e com sérios problemas de ereção? Aos poucos Joe passa a ser visto, não mais como gênio promissor, mas sim como piada para a cidade. Ele era colunista em periódico local e assim com as rugas pediam espaço em rosto jovem e deprimido ele perdia prestigio entre os leitores e por conseqüência entre os editores do jornal. Desempregado e morando sozinho, Joe não fazia mais a barba e pouco comia, passou a beber e assim ficou até os 40 anos, ultima vez em que nos encontramos, novamente no aeroporto. Porém ao invés de voltar de passeio de outro continente, Joe parecia ter firmado residência entre os mendigos locais. O vi, perguntei como estava, e quando ouvi meia dúzia de alucinações, virei as costas e saí, era difícil pra eu ver o pedinte Joe daquele jeito. Ele disse a vida toda coisas que disse no máximo duas vezes à minha mulher. Era pra mim um ídolo de infância.
Mas o destino guardou uma surpresa para o embriagado e desesperançoso Joe. Eis que, curiosamente, em uma manhã de sol como aquela, há 20 anos atrás, Cru aparece com se em uma miragem em sua frente, embora penosa em vê-lo naquele estado o leva para casa e pede perdão, diz que quando nova não dava valor a verdadeiras provas de amor, diz coisas lindas a Joe que, voltando à nossa órbita parecia não acreditar no que via e tampouco no que ouvia, Cru parecia mais linda que antes, e mais esperta também, afinal veio resgatá-lo do limbo, do purgatório que passava por causa do amor puro e inocente que sentia por ela. Era o um final mais perfeito e redentório que aquele amor de 20 anos atrás, Joe voltaria a escrever, seria fantástico! Deixaria de ser piada, passaria a ser respeitado novamente, deixou de sentir vergonha de olhar para o sol e para a lua, para os pássaros, era perfeito. Que final mais lindo do que ser resgatado por sua própria musa das profundezas de um calabouço chamado depressão? Tudo fazia sentido. Fez planos para a sua primeira vez, pensou em como seria bom entregar-se de corpo e alma a uma mulher e dar-lhe 40 anos de carinhos guardados, odiava a palavra sexo, fazer amor sempre foi seu objetivo, seu scopo. Eis que se casam, Joe faz uma declaração linda durante a cerimônia, emocionando a todos, não houve uma santa alma viva que não tivesse chorado aquela noite no casório.

Disseram alguns presentes que inclusive o padre teve dificuldades em concluir a cerimônia devido à emoção. A tão aparentemente tardia e esperada lua de mel chega, Joe agradece aos céus por esse momento, finalmente era feliz ao lado de Cru. Mas a noite chega e com ela seus mistérios, os planos que nosso sonhador e ansioso Joe fizera passaram frente a seus olhos a 400km por hora, rápido o suficiente para deixá-lo tonto e nervoso. Inquieto Joe! Não sabe onde colocar as mãos, não sabe quais botões apertar. Na noite mais esperada de sua vida Joe falha novamente. Mas o que é uma noite para quem terá o resto da vida? O que é uma noite para quem já esperou por toda a vida? Joe fica casado com Cru durante 15 anos, sem sequer tocar nas partes intimas de sua amada. Aos 60 anos, a frustração e uma galopante pneumonia levam Cru da presença de nosso, não menos ativo poeta. Ele faz um discurso lindo no enterro de sua musa mor.
O pesaroso Joe fica na casa, morando sozinho. Pensando, não em como alguém que vive a vida por um amor e o teve por 15 anos não conheceu o ato mais intenso desse sentimento, mas como uma vida foi pouco para viver por Cru.
Eis que Joe não espera por mais uma peripécia do destino quando aos 62 anos passeia só, procurando um centavo de inspiração no parque onde há 42 anos deveria ter encontrado Cru, o nosso amigo e já míope Joe sente uma presença ao seu lado, pelo harmonioso cheiro, viu que se tratava de uma mulher, muito bem trajada, porte elegante, sorriso cativante falando de leve em seu ouvido palavras que conhecia, porém sua memória um tanto lenta não o deixou perceber na hora de onde. Joe, já de óculos, levanta seus cansados olhos e reconhece as sardas naquele rosto, e novamente reconhece o universo nos olhos de Line. Seu primeiro e não menos desdenhado amor. Line sorri e diz:

- Após 44 anos de cartas não respondidas, de telefonemas ignorados, encontrei você, Joe. Sempre tive a esperança de encontrar-te, aos risos dos incrédulos que debochavam de meu amor e paciência dou como resposta meu sorriso ao te ver. 44 anos guardando um pedaço de papel onde descreveu para mim o mundo que vivia, seu mundo castanho. 44 anos olhando todo santo dia meus olhos no espelho, querendo conhecê-lo de perto. Tentei, em vão, adentrar nele a força, mas garanto-te que aprendi como se entra no coração de um poeta iluminado como você, depois de bater contra o espelho várias vezes querendo entrar e de me punir por aquela noite em minha casa, me pus a esperar-te, não sei como o amor pode gerar a paciência de 44 longos anos, mas aqui estou como a mais viva prova de amor que posso lhe dar.

Joe se emociona e como se tivesse quinze anos e responde:

- Assim como és a prova viva de paciência e amor, sou a prova viva de que por mais que as pessoas digam que sou perfeito como poeta não o serei sem ti, nada sois sem alma, nada sou sem a inspiração que me trazes. Não me penitencio por ter te deixado, tampouco por ser elo do seu sofrimento por todos esses anos. Meu corpo traz por dentro cicatrizes enormes que o tempo insistiu em me dar, e zelo por cada uma delas, sem elas não aprenderia a dar valor ao teu amor nem em 44 mil primaveras, sem esses anos de sofrimento de ambos nunca veria que tua meditação a mim sustentaria anos de inspiração que dediquei a outras mulheres. Hoje me vejo liberto de ilusões, o sorriso que me emprestas é minha alforria do mundo dos mortais, passo a partir de hoje viver por cada segundo que passar a teu lado. Cada sílaba que meu fraco corpo disser será em teu nome e honra minha amada.

Line pede a mão de nosso surpreso amigo Joe em casamento, que de primeira refuga, pensa em Cru, pensa que seria como traí-la, mas pensa que viveu por uma pessoa, assim como Line viveu por ele. Não queria que Line passasse pelo que passou. Aceita o pedido no mesmo segundo que uma lágrima desce do rosto sardento da emocionada mulher.

Toda a cidade convidada, uma festa mais linda e contagiante que no primeiro casamento, Joe, fica novamente esperançoso, não tinha como dar errado dessa vez, não dessa vez. Para a lua de mel, nosso precavido e com poucos conhecimentos de procedimentos geriátricos Joe, toma quase que por inteiro um vidro de remédios para a ansiedade. Durantes os festejos Joe está animado como nunca estivera em 62 anos de vida, dança, pula, canta suas poesias com um menino. Certamente a noite mais feliz da vida dele e de Line. Do contrário da primeira vez, onde seu coração batia como um cavalo de corrida, o coração de Joe batia tranqüilo, sereno e certo de uma noite perfeita e inspiradora. Joe em uma fração de segundos pensou e deduziu que Line realmente era a mulher dos cinco milhões. Que mulher mais certa enriqueceria um homem senão alguém que espera um homem por 44 anos? Joe não conseguia pensar em ninguém assim, se da conta que não precisaria mais dos remédios que havia tomado. Que história! Talvez até com uma autobiografia vendesse cinco milhões. Era, finalmente, após 62 anos um homem feliz. Após um casamento regado de amor e emoções, já a caminho da lua de mel, Joe, se sente aliviado, realizado.

Com naturalidade, passa a conhecer intimamente a mulher de sua vida, a mulher dos badalados, sonhados e não menos comentados milhões, Joe a beija e a despe na cama como se tivesse feito isso a vida toda, com calma, como se conhecesse seu corpo, como se nascera para aquilo.
Ficou por alguns instantes admirando seu corpo, cada centímetro dele, Line, que afinal também havia se guardado para Joe, é tomada de uma enorme emoção, e com os olhos fechados pergunta se Joe ouve a música, se ouve a linda sinfonia que os cercava, um coral de anjos amigos cantavam melodias suaves e doces, Joe diz que sim ao mesmo tempo que acariciava, beijava, e loucamente tocava cada curva do seu corpo. O nunca tão inspirado Joe levou Line as alturas com palavras doces, com beijos quentes, dizendo:

- Eu a amo, vejo agora que sempre a amei, vejo agora que toda minha vida foi dedica ao amor mais perfeito e puro que já existiu, nem mesmo todos os Deuses poderiam pensar em uma história como a nossa, minha amada. És e será eternamente meu ar, meus pés, o alimento de minha alma. És a fonte de amor de um universo castanho que te nasceu por ti e por ti se manterá. Ouça os anjos a nossa volta bendizendo nossa união, nosso amor cabal. Quero conservar essa paz assim como seu corpo em meus braços, não apenas hoje, mas até que tenhamos tocado com nossa mão todas as estrelas que há no céu, até que se rendam ao nosso carinho, és sem duvida a mulher dos Cinco milhões.

Line não compreendeu a última parte, mas amou ouvir aquilo e respondeu:

- Também o amo, meu querido poeta, sempre tive certeza de seu amor e por isso o esperei, ouvir-te e ter-te é sem dúvida o maior prazer que podes me proporcionar, darei seu nome a uma das estrelas que me faz ver quando dizes que me ama, diga mais, diga...


Pediu que seu amado dissesse mais, que continuasse... Mas eis que a emoção e o destino implacável e porque não improvável e estraga prazeres entra nova e derradeiramente na vida de Joe parando seu coração lentamente, bem lentamente... Levando-o da companhia de sua amada.
Aquelas tinham sido as ultimas palavras do falecido Joe. Que gora não poderia mais dizer o que nascera para dizer, amar do jeito sabia amar. Não poderia mais arrebatar suspiros ou mesmo paixões... Foi-se feliz... Mesmo sem seus Cinco Milhões.

Gabriel de Deus / Pássaro

terça-feira, setembro 01, 2009

Sem Voz

Antes de sair para trabalhar beijei minha esposa como de costume, o dia estava fechado e cinza. Embora fosse primavera não recordo-me de ver uma flor, ou um pássaro sequer. Mas hoje penso que não os veria mesmo que estivessem em revoada sobre minha cabeça, tal andava de preocupações e desgostos. Sentia na boca um gosto que me lembra as cinzas de um cigarro sem nunca ter colocado um nos lábios. Ana tem andado calada, monossilábica e fria comigo. Todo dia subo uma aguda e íngreme colina com o peso de um piano as costas que me está por sugar toda minha saúde. Minha beleza. Minhas pernas pesadas justificaram esse andar exausto. Recordo-me que nesse dia quase fui despedido, respondi mal a meu chefe por pouca coisa, justo nesse dia. Dia que não vi passar, como tantos. Moro há duas quadras de um parque lindo e cheio de árvores, na qual minha filha Stela gosta de brincar. Já nessa época sentia saudades dela mesmo dormindo no quarto contiguo, ela é uma criança adorável e encantadora. O relógio indicava que faltava pouco para as vinte horas, sai do trabalho mais cabisbaixo que o de costume, havia tido um dia péssimo. Vi passarem por mim uma senhora e uma menina de uns 12 anos de idade, idade de Stela e recordei-me do dia em que ela nasceu, era primavera como hoje, lembro do sorriso de Ana, do meu.

Lembro de esse ter sido o mais feliz dia de minha vida. Essa lembrança trouxe-me a mente outros momentos assim, como no dia do meu casamento, do dia de meu aniversário ano passado, de minha finada mãe, e curiosamente vi meu parto. Vi minha mãe na cama, vi uma luz que saía dela, luz que ficou forte e lançou-se por todo recinto de uma vez só, nesse momento fechei os olhos, sem parar de caminhar. Recordei de meu primeiro emprego, do primeiro carro, da morte de meu pai, do dia em que conheci Ana e de como fui rude com ela sem necessidade nos últimos tempos. Pus o pé para fora da calçada para atravessá-la e não vi, apenas ouvi um carro a altíssima velocidade há poucos metros de mim. Recordo de um choque muito grande, um forte impacto no peito que me derrubou com violência.

Fui jogado para o outro lado da rua no mesmo instante. Com o susto me levantei rapidamente. Ainda meio grogue tentei equilibrar-me, vi tudo rodando, girando sem parar. Caí sentado. Levei a mão à cabeça para procurar sangue, mas nada achei. Não ouvia nada, apenas via tudo de forma turva e cansada. Meus movimentos ficaram lentos, foi quando tentei novamente tentei reerguer-me. Ao ficar de pé vi há alguns metros de mim metade de meu corpo debaixo do carro, que estava resumido a um monte de ferro ao pé de um poste, fiquei desesperado e passei a procurar meus restos, foi quando vi minhas pernas espalhadas pela avenida, com muitas pessoas a minha volta, falantes, chorosas e espantadas com o que viam. Tentei andar mais rápido até um pedaço de meu corpo para prosseguir, levantar-me dali, mas era como patinar no ar, eu não conseguia me mover. Tive calor, uma vontade de correr, sumir, ou mesmo acordar dali e ver minha filha novamente. Não senti o ar a minha volta e isso piorou minha angustia. Algumas pessoas foram embora do local quando começou a chover fortemente. Permaneci ali, parado e estático. Inútil e inerte, alheio. Receio aqui ficar, chorar. Contudo creio que em instantes vou acordar. Isso não pode estar a se passar. Não comigo, o que será de Ana e Stela? Como ajudá-las se meu corpo foi partido em dois e me encontro na chuva sem conseguir sair do lugar, afogado em um ar pesado. Tentei novamente correr, mas nada aconteceu... Precisava avisar Ana do que aconteceu, ela me espera para jantar! Fechei os olhos e vi minha casa de cima, como se voasse, como num sonho... Fiquei satisfeito por vê-la, dentro de alguns segundos estava lá, em casa novamente, procurei Ana no quarto, não a encontrei, procurei por Stela e não tive resultado.

As duas estavam na sala, falando com um homem de preto e capa de chuva. Não conseguia ouví-lo, mas tinha um ar pesaroso nos lábios quanto ao que falava para as duas, que se puseram a chorar copiosa e desesperadamente. Cheguei perto de Ana, e falei onde estava, que fosse me buscar, chamar alguém, quem sabe desse tempo de algo.. Mas ela não me ouviu. A pequena Stela estava pálida e sem reação, sem saber o que fazer. Foram consoladas pelo gentil homem que agora pude reconhecer, era Francis. Velho amigo meu, amigo de todas as horas. Há anos não o via. Embora gostasse dele como se fosse meu irmão não me agradou vê-lo em minha casa, algo me palpitava ao coração, algo que não gostava de sentir. Fiquei agachado no canto da sala escura de minha casa vendo-o abraçar-se em Ana. Ela sempre foi uma mulher muito bonita. Senti um fogo tomar conta de mim, uma vontade de feri-lo, machucá-lo. Fiquei novamente de pé e tentei agredi-lo, porém em vão. Nenhum golpe meu surtiu efeito, não consegui tocá-lo. Estava exausto! Pus-me num canto qualquer do nosso quarto, sentado por dias. Ela demorou a chegar muito penosa, muito triste. Era quase de manhã quando se levantou do sofá em que estava e tentou dormir, foi quando tentei falar-lhe que estava ali, junto a ela, mas não era ouvido. Abracei-a e comecei a chorar, ela não conseguiu dormir, estava agitada. Abracei-a com mais força e quanto mais força eu usava mais agitada e nervosa ela ficava, mas tinha que ajudá-la. Era minha missão como seu marido. Decidi ali que seria para sempre seu protetor, sem deixar jamais que algo lhe acontecesse, seja o que ou quem quer que queira fazer-lhe mal.

No dia do meu enterro ela estava pior, cada vez mais magra e pálida. Fiquei ao seu lado o tempo todo caso Francis ou mais algum atrevido viesse perturbar-lhe a paz. O cemitério estava definitivamente lotado, havia muitas pessoas lá, não somente para meu funeral e embora ninguém me ouvisse, alguns me olhavam, mas no momento não vi nada disso, estava compenetrado em fazer a segurança de Ana. Cresci em mim quando vi aproximar-se dela Francis e mais um amigo. Gritei em seu ouvido que ficasse longe dela, mas ele não deu atenção. Levou-a um canto e disse que sentia minha falta, que estaria à disposição dela e de Stela para o que precisasse. Disse a ele novamente em claro e bom som que não precisava, eu estaria ali para sempre e proveria elas no que faltasse. Com a mão empurrei-lhe o peito, mas ele nada sentiu. Quando o vi anotar o telefone dela em um papel corri para o tumulo e deitei no pedaço que restara de mim para levantar-me novamente e fazer aquele traidor entender de uma vez por todas que ela era minha mulher. Tentei exaustivamente reerguer-me, mas sem resultados. Despediram-se e fiquei por horas mais aliviado.

Ele visitou nossa casa por meses a fio, ainda contra a minha vontade. Stela, que ficara praticamente muda depois que saí do seu campo de visão, estava começando a se soltar com aquele sem-vergonha. Ana também, já esboçava um sorriso ou outro, passou a gostar da companhia dele. Tinha eu em mente que Ana jamais se apaixonaria por outra pessoa que não fosse eu, ate porque eu estava ali, a protegendo. Pensava isso até que flagrei um pensamento seu em que sentia a falta de uma presença masculina em casa, mas não apenas após a minha morte, mas muito antes de tudo. Tentei gritar com ela, o que estava ela pensando a meu respeito? Ela lembrou-se de mim como alguém fraco e distante, sem objetivos. Incapaz de dar-lhe segurança. Lembrou-se também da ultima vez em que tinha visto Francis antes do dia da minha morte, em como ele estava bonito no meu aniversário, também no natal. Enfureci-me, tentei quebrar um jarro que estava sobre a mesa, soqueei um vidro da janela, esperneei mas nada chamava sua atenção. Estava hipnotizada por aquele porco nojento. Refletiu que eu era um morto antes de morrer e que Francis era um homem digno e que merecia uma chance. Num ataque de fúria joguei um prato ao chão e um dos cacos cortou seu pé , ela ficou assustada, sentou-se perto da escada e pôs-se a chorar. Percebi que tinha falhado e chorei também, pedindo desculpas, abraçando-a e beijando, mas ela não retribuía aos meus carinhos. Alguém bateu à porta e ela foi abrir, não para minha surpresa era ele. Com as duas mãos tentei empurrá-lo para fora da casa, dizendo que ali não era seu lugar. Mas ele entrou, tomou minha Ana nos braços e a beijou... Cortando meu coração em milhares de pedaços. Tentei agredi-los com força, puxar seus cabelos, tentei pegar uma faca e não consegui. Teria os matado ali mesmo.

Alojei-me num canto de nosso quarto, sagrado quarto e os vi se amarem como adolescentes. Pude sentir um ódio correr em cada veia, mas acima disso uma impotência em ser o guardião de uma rainha que já tinha um rei e não havia espaço para outro. Tive a coroa na cabeça, o cetro em minhas mãos. Mas nunca o respeito de minha amada. Sinto-me aprisionado pelo remorso em correntes que pesam tanto ou mais que o tempo perdido. Mas prometi ficar junto a ela para sempre e é o que eu vou fazer, nem que seja sentado aqui, nesse canto do quarto. Para sempre.


The Fire Walk With Me, Uncle...

Gabriel de Deus.

domingo, agosto 23, 2009

Capela 5

Todos na capela 5 seguraram o choro quando viram entrar no recinto e caminhar de cabeça baixa em direção ao caixão ninguém menos que o astro de telenovelas Ferdinando Mesquita. De luto, o ator usava uma casaca de veludo e um chapéu preto, que tirou em homenagem ao morto. Debruçou-se sobre o ataúde, pôs o rosto entre as mãos e derramou um pranto comovente, emocionante. Havia perto de 50 pessoas no recinto, claramente divididas em dois grupos maiores que pareciam não se falar. Na verdade pareciam nem se aturar. Um terceiro e menor grupo observava tudo de longe, num canto da capela. Eram duas mulheres, uma mais nova e uma mais velha, que parecia ser mãe da primeira e os dois grupos além de odiarem-se, odiavam também o discreto e terceiro grupo.


Uma senhora que parecia ser a mãe do morto foi a primeira a aproximar-se do inconsolável ator que ainda estava de cabeça baixa, pediu licença e perguntou:


- Desculpe incomodar, mas o senhor é mesmo Ferdinando Mesquita?


- Sim, senhora, mas nada de autógrafos, por favor, estou arrasado!


- Todos aqui estamos arrasados, amigo... Apenas queria saber se é amigo do Carlos.


- Amigo não, éramos como irmãos.... Mas se não se importa prefiro ficar sozinho...


A senhora volta ao seu grupo e com sua filha e suas irmãs e comenta:


- Ele disse que era como irmão do Carlos, não eram apenas amigos!


- Carlos nunca comentou que conhecia alguém famoso, ainda mais um ator de telenovelas como Ferdinando.


- Poderia ser uma amizade de festas, orgias, etc. Por isso nunca falou.


- Por favor, já basta a mulher dele insultá-lo com baixas calúnias, chega disso, por favor!


- Vai dizer-me agora que era colega de trabalho do Carlos? Ah, tenha dó. Carlos nunca foi chegado ao trabalho, isso é fato.


- Carlos herdou a vagabundagem do papai!


- Parem as duas, Carlos tinha um corpo fraco, nunca se deu bem com trabalhos forçosos.


- Vou tirar a prova agora mesmo, chega de suposições!


A irmã de Carlos aproxima-se do choroso ator, e questiona:


- Desculpe incomodá-lo novamente, amigo, mas onde conheceu Carlos?


- Puxa, são raros os lugares em que não há repórteres com mil microfones tirando nossa privacidade, agora nem de meu amigo consigo despedir-me... Carlos e eu trabalhamos juntos sim, desde o inicio de minha carreira ele ajudou-me muito.


- Trabalharam juntos? Tem certeza?


- Por favor, senhorita, não estou em condições de falar, quiçá de mentir, deixe-me em paz, despeça-se dele em silêncio, pelo amor que tem a ele.


A irmã voltou ao grupo e comentou:


- Ele disse que eram colegas de trabalho, que Carlos o ajudara desde o inicio da carreira... Puxa, quase nem acredito, será que não conhecíamos o Carlos esse tempo todo?


- Eu disse, eu disse... Vocês difamando meu filho e tampouco sabiam de sua bondade, ele sempre foi um filho excelente, dedicado e ...


-... E vagabundo! não há como negar, mamãe... Falamos do Carlos que ele mesmo nos mostrou!

Esse último diálogo, pela exaltação das falantes foi ouvido no segundo canto da capela 5, que era ocupado pela viúva, sua irmã e mais alguns de seus familiares, que comentaram:


- Essa é boa... Dedicado? Trabalhador? Duvido e muito que Carlos tenha feito tanto por aquele senhor a ponto de ser chamado de irmão. Ele deve ser um credor de Carlos e veio aqui para saber se ele morreu mesmo!


- Ele é ator, para ele seria fácil fingir uma tragédia...

- Mas porque Carlos deveria alguma coisa a alguém famoso? Um astro? A ponto do mesmo vir cobrá-lo no próprio velório?

- Carlos era cheio de truques... Sumia de noite, aparecia dias depois... Aparecia com roupas novas, sumia com as antigas, esse é o filho dedicado daquela velha coroca... Nunca me acreditou quando brigava com Carlos por causa dessa "dedicação toda"


- Você deve ter ouvido errado...


- Vou eu mesma tirar a prova!


A viúva, com o véu no rosto aproximou-se do caixão, colocou a mão sobre o ombro do ator e disse:

- Que bela atuação, hein?


- Outra? Poderia deixar-me em paz, senhora? Respeito sua dor, respeite a minha...


- Tudo bem, tudo bem... Apenas responda-me, a quantia que ele lhe devia era muita?


- Não seja ridícula, Carlitos nada me devia, até pelo contrario, eu é quem lhe devo e muito!


- O senhor deve a ele?


- Sim... poderia deixar-me a sós com ele agora?


- Ah, sim, sim...


A viúva volta ao seu grupo e com uma expressão de surpresa no rosto exclama:


- Ele não é credor de Carlos!


- Eram amantes?


- Não, não ponha mais essa dúvida em minha cabeça, quando questionei se ele era credor de Carlos ele disse que é ele quem deve e muito ao "Carlitos".


- Deve dinheiro?


- Não sei, só sei que deve...


- Se deve a um parente nosso que morreu, nada mais justo que cobremos, não?


- Ele é ator, deve ter dinheiro...


- Talvez esteja aí o motivo para vir ao enterro, para saber mesmo se o homem a quem ele deve tanto morreu mesmo.


- Bem pensado, bem pensado...


A viuvinha chegou a dar dois passos em direção ao ator, mas viu que a discreta moça do terceiro pelotão já estava ao lado dele, perguntando:


- Desculpe lhe incomodar, mas ouvi que o senhor era amigo do Carlão...


- Sim... Éramos como ir...


-... Como irmãos, sim, já ouvi também. Não quero incomodá-lo, apenas confirmar. Carlão era um homem ótimo, mas não me lembro de vê-los juntos.


Ferdinando ergue a cabeça, olha para a moça e diz:


- Não me recordo de vê-la com ele também...


- Nossa relação não era a que eu queria, tínhamos uma relação meio às escondidas e...


Nesse instante no segundo grupo:


- Algum de vocês sabe quem é aquela moça?


- Nunca a vi, será amiga do Ferdinando?


- Não, se fossem amigos ela já o teria cumprimentado.


- Será que eram amigos de festa e essa é uma das suas amantes?


- Sempre desconfiei de traições por parte do Carlos... Essa rapariga é bem o tipo dele...


- Ah, filha, um homem que deve dinheiro ao seu marido e a amante de seu marido vêm ao enterro do seu marido e você nada faz? Não a reconheço mais...


- Tem razão... Não vou ficar com todas as contas do Carlos se esse senhor lhe deve e muito... Ah, mas não perdem por esperar...


Numa marcha furiosa a viúva volta a aproximar-se de Ferdinando e da moça, pega-a pelo braço e questiona em voz alta:


- Vamos parar de tico-tico! O senhor que era muito amigo de Carlos saberá me responder! Já viu essa perua ao lado do meu marido?


Surpreso, o ator olha pela primeira vez atentamente ao rosto da viúva e diz:


- Seu marido? Eu nã...


- Eu sei bem o que se passa aqui, mas não vou deixar que desrespeite o velório de meu marido! Ouviu bem? Não vou permitir! Nem o senhor, que nem me importa quem seja e nem essa sirigaita que não se sabe de que buraco saiu!


- Por que tantas perguntas? Será o Benedito? Escute aqui, minha senhora, eu..


Nessa hora a mãe do defunto se pronuncia:


- Parem os dois, Carlos estaria se remexendo no túmulo se visse isso, que fiasco, que situação, meu Deus. E muito me admira que você, sua mulher ingrata, que tanto reclamou de uma suposta vadiagem de Carlos, esteja a fazer desse momento, que deve ser de respeito, uma balbúrdia! Esse senhor era amigo intimo de Carlos, tinha muito apego por ele, veio aqui para dar um adeus honrado ao seu amigo e presencia essa terrível cena.


Virando agora para o ator ela continua:


- Por favor, senhor ator, peço que não dê ouvidos a essa louca e faça um discurso em homenagem ao nosso amado Carlos, conte mais sobre sua amizade tão linda!


Nisso ela aponta a uma faixa que estava às costas de Ferdinando com uma foto finado com uma frase que dizia: "Carlos Prestes, toda comunidade do morro sentirá a sua falta"


Ferdinando fica em silêncio por alguns segundos olhando a faixa e pensa:


- Mas o sobrenome de Carlitos não era Prestes. Tampouco morava no morro... e tampouco era negro!


Virou novamente e percebeu que não conhecia nenhuma daquelas pessoas que estavam a sua volta. Pegou o microfone com propriedade e discursou:


- Ao contrário do que muitos pensam, eu também nasci no morro. Nessa comunidade. Carlos, ou Carlão se preferirem, e eu, éramos mesmo como irmãos. Mas mudei-me muito cedo daqui, fui para a cidade, meu sonho era tornar-me ator e muitas vezes pensei em desistir, mas Carlão não deixou, encorajou-me e tornei-me famoso e reconhecido no que faço. Muitas vezes ele deixou sua casa e sua família para ir até minha casa ajudar-me e aconselhar-me. Tenho uma gratidão muito grande quanto a isso. Era um homem trabalhador e honesto, digo isto com propriedade, sempre disposto a ajudar os amigos antigos. Pedi algumas vezes sigilo quanto a nossos encontros porque ainda não era conhecido e se um momento de fraqueza como esse vazasse seria ruim para um ator iniciante.


Nesse momento a mãe do honrado defunto caiu em lágrimas, abraçou sua filha tremendamente emocionada, recebendo abraços e cumprimentos de todos no local. A viúva, que antes era contra a sogra, procura-a e em sinal de humildade, também a abraça, todas extremamente tocadas com as palavras. Prometeram fazer as pazes e deixar as situações antigas de lado, essas rusgas eram demasiado pequenas perto dos feitos do grande Carlão.


Também emocionado o ator prosseguiu:


- Nunca vi, se me permitem Carlitos com postura indecente com essa ou outra mulher; era um homem fiel e digno. Cumprimento a todos pelo belo homem com quem conviveram. Eu mesmo não creio ter vivido ao lado de tal ícone!


A mãe ainda emocionada pergunta:


- Como recebeu a noticia de sua terrível morte? Um homem como Carlos morrer da forma como morreu é desumano...


Ferdinando se viu em uma saia-justa, hesitou por mais alguns segundos, colocou as mãos no rosto e disse soluçando em tom de choro:


- Foi horrível, não posso nem lembrar-me disso que...


Nesse instante a mais nova das moças do terceiro pelotão pega-o pelo braço levando-o em direção à porta e diz a todos:


- Essa lembrança foi muito forte para ele, o choque foi grande, vou levá-lo para casa para que possa descansar. Parabéns a todos pelo homem maravilhoso que era o Carlão, mas Ferdinando precisa ir.


Todos se despediram com um sorriso nos lábios e lágrimas nos olhos, pediram um telefone em que pudessem manter contato com o astro, mas já era tarde, ele já havia partido, sem que pudessem agradecer-lhe mais por tudo, inclusive Carlitos.

O Passado do Mago!

Mal amanhece já ouço, do meu quarto, a voz de Miranda, grande Miranda... Velho amigo de meu avô e aparentemente 10 anos mais jovem que ele. Todas as manhãs ele vem a nossa casa chamar meu avô para uma caminhada gritando na porta:

- Acorda logo, velho Celso!

Os dois deram aulas juntos de teatro quando novos. Fiquei sabendo disso por Miranda, que era muito mais chegado a minha irmã e eu que meu legitimo avô Celso. Minha irmã, Laura, tem 20 anos, aparenta ter 30 a primeira vista e 40 na segunda, tem um rosto amargurado apesar da sua tenra idade. Um dia questionei à nossa mãe o porque do vovô ser tão quieto,sisudo e introspectivo. Ela disse que ele era um ator de teatro famoso e juntamente com Miranda tiveram uma decepção enorme no trabalho que nunca revelaram a família a tratavam disso apenas um com o outro. Mas porque então, Miranda tinha a mesma idade do vovô, passara as mesmas dificuldades e decepções e não era tão amargurado? Sorria e nos abraçava quando nos visitava, dava presentes, contava histórias e estava sempre sorrindo? Minha mãe não soube responder... Calou-se e fez uma expressão com o rosto digna de que também queria saber... Perguntei se vovó tinha algo a ver com isso, afinal de contas, não se ouvia muitas historias sobre ela. Nada para ser mais específico. A única coisa que soube dela é que também era atriz e das boas! Miranda, até onde sei, não era um bom ator, mas era, além de melhor amigo de vô Celso, um diretor de mão cheia e graças a sua aguçada percepção meu avô foi o que foi.

Em reuniões de família tínhamos alguns mitos e tabus. Há assuntos, principalmente sobre o vô Celso, que são proibidos. As vezes eufóricos passamos dos limites e perguntamos coisas que ele sabe, porém não responde, como por exemplo sobre a peça que o consagrou como grande ator que tinha o nome de O Mago, tampouco sobre a última peça que fez ao lado de vovó Flora chamada A tempestade. Vovô tem um olhar distante, e para quem não o conhece as vezes soa como arrogante. Se falamos sobre algum assunto mais específico prefere se abster, para evitar dar muitas explicações sobre suas idéias, dando uma impressão que não seríamos inteligentes o suficiente para entender-lo, ou mesmo dignos de ouví-lo.

Já estamos na primeira semana do verão e sexta será meu último dia de aula. Combinei com uns amigos de sairmos para comemorar, avisei mamãe que voltaria mais tarde, foi quando fiquei sabendo que mamãe e Laura iriam viajar para a praia com algumas amigas. Apenas vovô ficaria em casa. O inicio do verão é difícil para mim porque é aniversário da morte de meu pai Bernard, que faleceu há 2 anos, vítima de um acidente de carro.

Faltavam alguns minutos para acabar a aula quando uma pequena depressão me acometeu, todos vibravam com o fim do ano letivo, mas eu murchei, assim como no ano passado. Desculpei-me com o pessoal voltei para casa, o tempo estava se fechando e perto das 15h o céu estava completamente nublado, dando a tarde um tom de outono, apesar do calor. Não tinha nada o que fazer em casa, apenas não queria estar na rua. Cheguei em casa naquela tarde por volta de 16h, estava tudo quieto, deserto e escuro, apenas a luz de meu quarto acessa, o quarto de vô celso estava trancado, me fazendo imaginar que tivesse saído. Nunca entrei no quarto de meu avô, Laura também não e tenho quase certeza que mamãe também não. Ele mesmo limpava e cuidava. Não me lembro, em 18 anos de vida naquela casa, ver algum móvel entrar ou sair, tinha uma idéia do tamanho do quarto pela dimensão da casa e como ele se projetava para fora de casa, chegando perto da garagem, era como se fossem duas casas separadas. A porta era de madeira de lei muito grossa e escura, uma fechadura de bronze e duas trancas que estavam fixadas no alto da porta, o que explica o molho de chaves que vô Celso leva no bolso do paletó. Ainda no corredor, há um relógio cuco antigo e pifado, também de madeira de lei, que nunca vi funcionar, que, numa segunda olhada, percebi estar estrategicamente colocado da diagonal da porta do quarto, formando um triangulo juntamente com os dois marcos da porta.

Estava me sentindo cansado, resolvi deitar e dormir... Após pegar no sono, comecei a revirar-me na cama. Incomodado e levando em consideração que estava sozinho em casa achei-me no direito de abrir uma garrafa de vinho tinto, que mamãe escondia de Laura e de mim, em seu quarto. Tomei ¼ da garrafa antes de começar a ficar tonto e os outros ¾ depois de ficar tonto. Voltando safo do quarto de minha mãe até meus aposentos, parei em frente ao quarto do vovô, após olhar aquela porta pesada sem pensar em absolutamente nada sobre ela, me bateu ao ouvido um sopro de adentrá-la, antes de dar um passo outro sopro me aconselhou a não fazer, mas afinal de onde viria esse sopro? Senti-me vigiado. Foi quando olhei para trás e vi o cuco do relógio saltar em minha direção fazendo um ruído muito alto e forte como o de um despertador. Com o susto dei um passo para trás e esbarrei na porta do quarto que facilmente se abriu, caí no chão sentado em cima de um tapete verde musgo com algo escrito em francês que não pude traduzir. Como num passe de mágica a porta já estava fechada. Tentei me levantar para abrí-la novamente e sair, mas senti minhas pernas demasiadamente pesadas, assim como meus braços, não vi mais a garrafa de vinho, suspeito que tenha ficado no corredor, em frente ao cuco. O ambiente era escuro e ao longe comecei a perceber um a música suave e uma fumaça de charuto. Tentei rastejar até perto da porta para procurar um interruptor, porém em vão. Notei que além de música e fumaça também pude perceber uma estrondosa tempestade que caía lá fora.

Não sei se foi por estar caído no chão, mas notei o teto do quarto extremamente alto, quase o dobro de um quarto normal. Também não sei se por efeito do vinho, mas comecei a ter algumas alucinações, imaginando o porque daquilo, veio-me a cabeça que poderia vovô, ao entrar no quarto, transformar-se em um homem gigante, o que explicaria a projeção do quarto para fora da casa, quase invadindo a garagem, notei nesse momento também que a música era francesa e de época. Era cantada por uma voz feminina que deslizava em meus ouvidos de forma muito agradável. Pus-me de pé com certo esforço e tentei andar com mais esforço ainda, ainda sentindo os braços pesados estava caminhando como um primata, com os pulsos a altura dos joelhos. O quarto transformara-se em um extenso corredor, depois de alguns passos notei na parede à minha esquerda um retrato de vô Celso quando jovem, muito bonito, com uma postura real que muito me impressionou. Segui andando e vi ao longe, no fim do quarto, um retrato maior de uma mulher extremamente linda, que logo, supus ser vovó Flora. Lembro-me de ver poucas fotos dela da época do teatro, mas nenhuma tão angelical e simples como aquela, os cabelos lisos e louros, os olhos azuis e expressivos, apenas olhar para um rosto como aquele me trazia paz, tive impressão de que enquanto a olhava, de ter levitado por alguns instantes. Segui, mesmo com dificuldade, andando até perto do quadro, o som da tempestade se misturava com o a música.

Foi quando parei exatamente ao lado de uma cadeira de balanço onde meu avô estava sentado, ao lado de um velho abajur, que virada para o lado oposto, iluminava apenas o cinzeiro. Congelei temendo que vô Celso me visse e me xingasse por entrar no quarto, mas ele não me viu. Ele olhava ininterruptamente para o quadro, sem mover um músculo sequer. O charuto queimava no cinzeiro dando a noção que ele não o havia tragado uma só vez. Pensei em me mexer, mas não sabia até que ponto estava concentrado no quadro. Teria ele apenas acendido o charuto para lembrar de vó Flora? Nunca o vi fumando. Estava ficando com medo!

Vendo que não tinha sido descoberto ainda, e que ele estava compenetrado, decidi-me dar meia volta e ir embora dali de uma vez por todas e esquecer que aquilo tinha acontecido, quando notei a música ficar mais acelerada que o comum e ouvi a voz grave de vô Celso que seguia olhando fixamente para o quadro:

- Olá, Miranda....

- Meu coração acelerou, olhei em volta e não vi Miranda no quarto, comecei a tremer muito, a ponto de ouvir o tiritar de meus joelhos... Calei...

- Porque veio cedo hoje? Perguntou vô Celso....

Tentei sair correndo, mas não conseguia mover as pernas por tamanho medo... Vô Celso continuou:

- Deixe-me ficar mais um instante com ela, ela me faz tão bem....

- Pensei por um instante que meu avô estivesse dormindo, e por consequência sonhando que encontrara o amigo, foi quando ouvi Miranda falar:

- Vim no mesmo horário de sempre, velho amigo. Como tem passado?

Estupefato vi Miranda parado ao meu lado. Ao vê-lo parei de tremer e meu coração foi gradativamente voltando ao seu batimento natural.

- A saudade tem me matado, quando voltarei a vê-la? Respondeu meu avô.

Quando for o momento, - respondeu Miranda, docemente- , e principalmente, quando estiver preparado, concluiu.

Meu avô enxugou algumas lágrimas que caíram sobre seu rosto e foi prontamente consolado por Miranda, que disse:

- Flora está ao lado de Deus, amigo.

- Ela não sente saudade de mim?

- Sente, mas tem, já, a consciência que se lamentar não irá o trazer para perto dela. O que me diz de apagar esse cigarro, acender essa luz e voltar à luta?

- Sempre me consolando... Não sei o que seria de mim sem você....

- Não faço nada além da tarefa que me foi confiada, você deveria fazer o mesmo...

- Eu sei, mas essa tempestade, lembro de Flora... Flora....

Meu Avô pareceu ter adormecido.

De repente vi que o quarto estava novamente iluminado, alías extremamente iluminado, o charuto havia se apagado e meu avô estava em uma cama dormindo com o uma criança, porém não com um ar cansado como o de costume quando dormia na sala de casa, e sim com um ar de paz muito grande. Que se passava ali? Penso que bebi demais.

O teto do quarto estava, novamente, em altura normal, e com a luz, pude ver o grande número de quadros que havia na parede, fotos e retratos de peças de teatro de 20, talvez 30 anos atrás.
Vi vovó vestida de anjo em um quadro que representava uma peça com o nome de Céu, ao lado de vovô, que demonstrava no quadro enorme alegria! Fiquei contente em vê-los sorrindo, aliás, me sentia extremamente mais leve de que quando entrei ali. Não tinha mais o gosto do álcool na boca e também não sentia mais os braços, tampouco as penas pesadas.

Porém apesar disso, tinha que sair dali e a porta seguia trancada.... Foi quando senti em meu ombro a mão leve de Miranda, que disse-me de forma angelical e paternal:

- Ajuda para sair?

- Sim, por favor, respondi sorrindo!

Tocando muito levemente com a mão na maçaneta, Miranda abriu a porta e saímos.

- Saindo do corredor para a sala perguntei, como você entrou no quarto sem que pudesse vê-lo?

- Quer mesmo saber?

- Sim, retruquei de pronto.

- Sou o anjo da guarda de seu avô!

Parei o olhar e sem pensar em duvidar, calei por um instante. Como assim anjo?

Como se lesse meus pensamentos ele respondeu:

- Sou amigo de seu avô e de sua família há muitos anos e muitas vidas, nesse momento de confusão em que seu avô vive me dispus a ajudá-lo.


- O que aconteceu com você e o vovô antigamente em uma peça misteriosa que não deu certo? Segundo a minha mãe esse é o grande causador de uma parte da tristeza de meu avô.

- Seu avô era, sem sombra de dúvidas, a cabeça mais inteligente que conheci, tinha ideias fantásticas sobre tudo, escreveu inumaras peças de teatro junto a sua vó, que também era genial. Embora tenham nascido aqui, conheceram-se na França durante um festival, se apaixonaram e casaram-se.
Seu avô tinha uma idéia não acabada de um romance chamado A Tempestade, essa história de passava em uma cidade pequena, na Rússia, em que uma tempestade caia torrencialmente durante 4 meses, presos, cada um em sua casa, não conseguiam se ver, um homem e uma mulher, com o passar do tempo passaram a se comunicar por telepatia, que foi desenvolvida pelo amor puro que tinham um com o outro.
Sua avó Flora completou a história dando um final lindíssimo, onde ambos morreram ao mesmo tempo e suas almas se encontraram nos céus, onde foram eternamente felizes. Flora ressaltou que o amor não precisa estar de corpo presente para existir e se desenvolver, e também deixou claro que não há chuva que não passe, assim como não há uma situação desagradável em sua vida que não tenha fim. O espetáculo era muito emocionante e fez um sucesso sem tamanho por toda a Europa durante muitos anos.

- E porque parou de fazer? Questionei.

- Porque Flora adoeceu e faleceu, segundo Celso foi por um descaso do médico que a cuidou, acusou-o de dar em cima de Flora, e após ter levado um não, tratou-a com displicência. Por muitos anos Celso viveu em depressão profunda, culpando o médico, que veio a falecer um ano depois disso.

- Mas diante a isso o que pode ele fazer para mudar a situação?

- Perdoar! Perdoar independente do que aconteça, do mau que o aflija. Ao momento que aprender a perdoar, se libertará de muitas chagas que o ferem hoje, mas já é tarde, preciso ir, marquei de sair com seu avô e logo mais voltarei aqui.

Nos depedimos e vi que o dia já estava por raiar, daqui há não muito tempo já será alvorada.

Ao colocar a cabeça no travesseiro pensei tinha sido duro demais com o vovô, pensando que não gostasse de nós, ele apenas tem um amor profundo por alguem e sente saudades, como qualquer outra pessoa, espero ter um amor assim também, viver o que viveu. No fundo ele sente o que senti por papai hoje, uma falta imensa de estar perto, de abraçar, de falar sobre meu dia, do calor dele.

Não sei se conto o que vi hoje para a mamãe e para Laura, não sei como interpretariam. Vou ser mais brando como o vovô, quem sabe ele mesmo não conta tudo para as duas?

Vi que curiosamente o dia estava amanhecendo, não demorou muito e ouvi à porta de casa:
- Acorda, Celso dorminhoco...


Gabriel de Deus!
El fuego camina conmigo.