sábado, fevereiro 27, 2010

Pedro Mão Fina

Imagine você qualquer cidade pequena de clima bucólico e rústico há muito, muito, muito tempo atrás. Bem ao sul há uma fazenda, muito bem cuidada. Nesse mesmo espaço há mais tempo atrás ainda chegou a comportar duas fazendas. O dono de uma se endividou e acabou por vender sua parte ao dono do atual espaço por um preço irrisório e passou a ser peão numa terra em que já havia sido sua. O atual dono casou-se e teve duas filhas, uma muito bela e uma nem tanto, que atendia pelo nome de Frederica. O chefe dos peões, que antigamente era o dono de metade daquele imenso lugar também teve filhos. Um belo e trabalhador e outro apenas trabalhador, que atendia por Pedro, ou Mão Fina, adjetivo esse que ele odiava só de ouvir. Apelido dado pelo fato de ter uma mão sem calos, por vezes fraca. Que não era firme no aperto de mão e que dava a impressão que o moço não era chegado a trabalhos pesados. Fato esse reforçado devido a não ser muito prendado em serviços manuais era maio desengonçado. Seu irmão, pelo contrário tinha ombros largos, pernas e voz grossas, além de um aperto de mão que mais parecia um prensa.

Os rapazes e as moças foram criados praticamente juntos, apesar da relação patrão e empregados e foram crescendo. Rica, que é como chamaremos a segunda filha do Patrão, era muito tímida, por vezes parecia muda, enquanto Mão Fina, apesar de não ter controle sobre sua língua, fosse o peão mais falante de todos. E aos poucos começou a olhar com outros olhos para Rica, que de vez em quando retribuía os olhares. O patrão tinha total confiança nos rapazes e no serviço feito. Porém numa manhã de domingo chamou o chefe dos Peões e disse:

- Seus filhos estão grandes, não? Cresceram rápido...
- Cresceram, sim, senhor... Tão bem grande os moço...
- Eles lhe ajudam parelho no trabalho?
- Sim, nem tem porque não, senhor... É a vida que sobrou, né?
- Pois bem, com que idade Mão Fina está?
- Ora, senhor, com todo respeito, o nome do rapaz é Pedro... Ele num gosta muito de ser chamado assim.
- Tudo bem, tudo bem... Mas com que idade ele está?
- Com a mesma idade que eu e o senhor nos casamos e compramos essas terras...
- Outro dia o vi trabalhando e não pude deixar de notar que suas mãos ainda não tem calos... São fracas!
- O menino ta em fase de crescer, vamos aguardar
- Apenas observei, compadre.... Ele já é assim há um bom tempo, dê mais trabalho a ele, quero ver a mão dele assim como a do irmão. Peão de Mão Fina não é bem falado. Digo isso em respeito a você, se fosse qualquer outro eu já mandaria embora.
- Mas o rapaz trabalha senhor, se esforça. Mas tudo bem, vou pedir que capine mais um pouco então.
- Assim espero.

O pai fica desenxabido e procura o filho para uma conversa. Ao longe vê o primeiro filho ajudando Rica a trazer os livros de escola. Do outro lado da fazenda, observando a mesma cena debaixo de uma árvore estava Pedro, o Mão Fina. Pedro não sabia ler, as únicas com direito ao ensino ali eram exatamente as filhas do patrão. Mas a julgar pelos olhos dele para a cena estava certamente curioso pelos livros, mas não mais atraído que por Rica, que ruborava a cada olhada do moço.

Alguns dias se passaram e com eles muitas idéias na cabeça de Pedro, como se aproximar da moça ou mesmo ser notado da forma que ele queria? Seu pai havia pedido que ele fosse até a casa do patrão para pedir a chave do estábulo. Viu a chance perfeita de vê-la, então foi confiante, porém nervoso. Chegado à sala vê a mãe da moça que lhe estende a mão e lhe dá bom dia, inquieto ele estende a mão fina da direita e a cumprimenta, pede a chave e enquanto aguarda corre os olhos por todo o local. Vê Frederica sentada na sala ao lado lendo de forma compenetrada um livro de capa grossa e azul. Fica curioso e na ameaça de dar um passo a chave lhe é entregue pela mãe da moça. Ele volta animado, achou já ter visto um livro em sua casa, mas não se recorda bem ao certo. Pôs-se a procurá-lo em casa, mas nada encontrou. Resolveu falar com seu pai:

- Pai, uma vez vi um livro aqui em casa, o senhor sabe onde ta?
- Pedro, bom ter tempo de falar, quero falar-te uma coisa.
- Ué, pai, que se passa?
- Pedro, outro dia o patrão veio aqui falar-me sobre você, quer que lhe dê mais trabalho
- Mais? Mas eu o senhor e o mano já se acabemo nessa terra e...
- Eu sei, mas é pra ver se suas mãos engrossam... Sua voz também é fina e não deveria ser mais... Com sua idade eu...
- Ara, já sei, já sei... Com minha idade já tinha voz de homem... Mas o que eu faço com a voz? Vou capinar pra engrossar também?
- Não seja malcriado. Talvez se falar menos mal criações ela engrosse. Amanha você vai capinar a sua parte e a parte do seu irmão, como o patrão mandou e sem choradeiras...

O menino saiu dali um tanto quanto cabisbaixo, talvez não mais porque ao longe viu Frederica na janela. Olhando ao longe, sem fixar os olhos em nada. Parecia descansar da leitura. Como o quarto dela era no segundo andar e a casa era azul, o que acabava se misturando com o céu, de onde Pedro olhava ela parecia voar. Logo atrás da casa, dando a impressão que estava logo atrás mesmo estava o sol. Quase se pondo. Mas ele parecia correr e aquela cena não duraria muito tempo, valeria a pena olhá-la mais um pouco. Valeria a pena para de respirar se fosse o caso. Pedro foi estendendo o braço na direção de Frederica e esse movimento certamente seria notado por ela, mas sua irmã apareceu ao lado e a pediu que fechasse a janela, encerrando a paisagem. Pedro baixou o braço e viu que o sol já tinha ido. Bastou-lhe aguardar a manhã de trabalho duro.

Sem demoras o dia nasceu, e o mesmo sol que lhe dera um presente na tarde passada viera agora lhe trazer o inicio de algo árduo. Levantou-se junto com seu pai e seu irmão como o de costume e foi encontrar os outros peões. Migrou sozinho e calado para o terreno que preparava todos os dias, mas que agora parecia ter dobrado de tamanho. Para todo o lado que olhasse havia apenas terra e mato e mal conseguia ver a ponta mais alta da casa de Frederica. O sol estava forte, e a cada enxadada que dava o fazia com força e um pouco de raiva. Para ver se os malditos calos cresciam logo.
Ao fim da manhã havia terminado metade do campo. Com as mãos vermelhas sentou a mesa. Mais dolorido do que orgulhoso das mesmas, é verdade. Mas quieto. Seu pai observava tudo com a mesma quietude, assim como seu irmão.
Dirigia-se para a retomada do trabalho quando viu que debaixo de uma árvore, um tanto distante, descansava Rica com seu livro a tira colo. Ela ficaria no seu campo de visão e estava de bom tamanho para aquele dia desgastante. A cada enxada dava uma olhada na moça que retribuía na mesma intensidade. Mas lá pelas tantas Pedro viu que estava sendo observado pelo patrão também e mais que isso viu que o mesmo se aproximava bem lentamente. Automaticamente aumentou as enxadadas e diminuiu os cuidados à moça.
O patrão se aproximou e disse calmamente:

- Se um peão de mão fina não serve pra trabalhar nas minhas terras o que te faz pensar que serve pra casar com minha filha?
Assustado Pedro respondeu:
- Eu to só trabalhando, senhor, longe de mim quer...
- Eu não sou cego, filho; respondeu já exaltado o patrão, é normal na sua idade cuidar as moças, mas é normal também que trabalhe e tenha calo nas mãos... Se não pode apertar minha mão como um homem como vai cuidar de minha filha? Vai deixar fazerem ela de gato e sapato? Hã?
Pedro ficou nervoso e começou a gaguejar. Deixou cair a enxada sobre o pé e se cortou e de tudo isso somado começou a chorar...
- Mais essa ainda? Um chorão? Vou falar com seu pai, não quero mais você aqui, vou trocá-lo por um peão de verdade!

Dito isso e dado as costas o patrão se vai e logo mais Pedro também iria... Seu pai tentou argumentar dizendo que Pedro trabalharia de graça até que engrossasse a voz e fosse um home de verdade, mas não adiantou. Ele queria Pedrinho fora dali até a o amanhecer... A noite não demorou a chegar e a essas alturas todos na fazenda já sabiam de tudo. Apesar de ser fraco aos serviços duros Pedro era um menino encantador, curioso, simples, inquieto e singelo. Frederica suspeitava de todas essas qualidades e todas lhe eram bem-vindas, porém não tinham mesmo uma aproximação para confirmá-las. O que chegava ao seu ouvido era que Pedro tinha mãos finas e não era dado ao trabalho. Mas algo lhe dizia ao pé do ouvido que não era verdade. Abriu a janela e viu ao longe na casa de Pedro a luz do lampião acesso e resolveu descer. Sorrateiramente atravessou o gramado e se pôs de baixo da janela a ouvir. Ouviu o choro da mãe de Pedro e as frases do pai dizendo que talvez na rua aprenda algo e volte para casa como um homem. Pode ouvir seu irmão se despedindo também.

Pedrinho saiu sozinho pela porta e foi em direção ao portão da saída cabisbaixo e muito triste. Com um assovio foi chamado por Frederica e quando notou sua presença atrás de uma árvore chegou a cair, espantado, como se tivesse visto um fantasma.

-Você aqui?
- Sim, o que aconteceu afinal porque te mandarem embora? Levante-se...
- Seu pai acha que não trabalho bem porque tenho mãos finas e não tenho voz grossa, acha perda de tempo me manter aqui e que sozinho na rua vou aprender a ser um homem de verdade...
- Meu pai é um grosso.
- Seu pai não deixa de estar certo, como vou proteger você e sustentá-la se não consigo apertar a mão dele?
- Pretendia me sustentar? Perguntou ela envergonhada...
- É... bem... Você sabe, eu...

Ela riu, lisonjeada e respondeu:

- Mas você não pode ficar na rua... Conheço um galpão perto da minha escola e você pode ficar lá uns dias, eu pego algo escondido e levo pra você comer...
- Mas não posso ficar lá para sempre...
- Só até você achar algo melhor, por favor... Vou sentir-me culpada se for assim e nunca mais voltar...
- Tudo bem...

Pedro instalou-se no tal galpão e ali esperava a comida que a menina lhe trazia nos intervalos. Certo dia ela apareceu com um livro nas mãos e ele questionou:

- Que tanto tem nesses livros que você carrega? O que são?
- Depende, esse é de matemática, sabe o que é?
- Não... Respondeu ele encabulado.
- É a ciência que estuda os números!
- Hum... Disse ele como quem não tivesse entendido nada...
- Há outros também de escritores famosos... Você sabe ler?
- Não, não sei não...
- Gostaria de aprender?
- Não, não sou pra isso não... Se eu tiver mão fina, voz fina e perder meu tempo aprendendo e ler meu pai me mata depois...
- Não seja bobo, sabendo ler você pode escrever uma carta para o seu pai depois, dizendo que esta bem, que esta trabalhando...
- Mas meu pai não sabe ler, ele...
- Ah, eu leio pra ele a carta... Você precisa saber ler e escrever, sim. Ponto final.

Pedro, embora contrariado obedeceu a moça, afinal era ela quem lhe trazia comida e sem ela era bem possível que ele já tivesse morrido de fome. Nos curtos intervalos que tinha ela lavava algumas frutas, pão e um livro, onde tentava explicar como as letras se uniam, formavam sons, e como formavam palavras. Frases, textos. Levou inclusive um pequeno quadro, onde ensinava melhor. Pedro já conseguia ler algumas poucas palavras e conseguiu também uma vaga de ajudante do porteiro da escola. Não tinha condições de pagar pelas aulas, então dali observava tudo que podia. Agradava-lhe muito a postura de um dos professores de Frederica, um homem distinto, alto, magro, com cara de intelectual. Concluiu que alguém assim certamente sabia ler e fazer muitas outras coisas pediu que Rica lhe ensinasse tudo que podia e a moça com certeza não se negou, fazia aquilo com prazer e foi vendo também que Pedro era muito inteligente. Pegava o conteúdo ensinado com facilidade. Em poucos meses mais, Pedro escreveu à sua família a primeira carta, com as mesmas mãos finas que um dia lhe fizerem ser expulso da fazenda. Rica lia em pé e em voz alta à família do menino poucas palavras, porém escritas por um pulso orgulhoso. O pai custou a se entregar e chorar, mas uma lagrima insistiu em cair e o denunciou. Na carta o menino agradecia ao pai pelas lições e que estava aprendendo a ser um homem, tirando a parte que envolvia Frederica contou tudo, sobre o trabalho junto ao porteiro e sobre o professor que admirava.
Foi uma comoção sem fim por parte da família, e intimamente por parte da moça também.

O ano letivo dela estava no fim, ficaria fadada a não ver Pedro por um tempo. Os dois criaram um vinculo muito belo e raro na maioria dos casais ditos “normais”. O da admiração. Ela o admirava pela vontade de saber e a entrega a tal. Ele a admirava pela dedicação e sabedoria, e porque não pela paciência. Afinal um amor não nasce de uma hora para a outra, mesmo que esteja predestinado a acontecer. Pedro sentia algo em seu peito por ela que não era mais capaz de conter, algo que precisava sair, que queimava seus peito e suas veias. Algo que correu em seu corpo por anos, talvez mais tempo que ele se considere um homem de verdade. Sentia algo que se não fosse dito ficaria trancado em sua garganta para sempre...

Ela viria pela ultima vez visitá-lo no ano na segunda-feira e era sexta. Pôs-se a escrever como um faminto devora um prato de comida. Comida por sinal que não sentiu falta nesse tempo. Tinha apenas um lampião como companheiro, visto que o porteiro da escola não ficava ali aos fins de semana. Não conhecia muitas palavras e não era necessário. Seu amor era puro e simples, palavras sofisticadas seriam mal vindas.

Frederica saiu de casa pesarosa por ser o ultimo dia do ano, que passara rápido, mas tinha sido o mais gratificante de sua vida. Tinha ela também um amor guardado no peito, amor que não poderia, embora quisesse, gritá-lo aos quatro ventos ou era capaz de ser expulsa de casa também. Um amor que conviveu quase que diariamente de forma muda durante a maioria do tempo, mas que em tempo faria o coração pulsar mais forte que qualquer aperto de mão. Pensando nisso ela chegou à escola, onde viu Pedro Mão Fina exausto sobre a palha empunhando um papel. Assustada ela questionou o que havia se passado. Com uma mão cheia de calos ele acariciou seu rosto e lendo respondeu com uma voz grave:

Sempre grato a ti eu serei por mais que o sol me castigue depois de vê-la voar.
Mesmo que exista mais palavras no mundo que eu possa estrelas contar.
Elas não serão suficientes para expressar o meu amor por ti, bela Frederica.
As palavras que me ensinaste serão as que eu sempre lembrarei.
As que aprendi sem ter que soletrar.
Escrevi dias a fio para agradecer-te e acabei por minhas mãos calejar.
E digo que nada no mundo me deu mais prazer, que aprender a te amar...



Fim!!!

Gabriel de Deus
El fuego volvió a visitarme, tio :O)