domingo, março 14, 2010

Tempo Cego

PRIMEIRA PARTE, SEGUNDO ELE:

Sempre me dediquei muito ao meu trabalho, fiz tudo que pude pra me destacar, subir de cargo. Mesmo mais novo que meus concorrentes cheguei a um cargo importante em um conhecido escritório de contabilidade, que lidava sempre com grandes clientes. Essa vida competitiva me fez colocar em segundo plano uma paixão de infância, que é a fotografia. Tirar fotos foi meu grande amor até entrar na faculdade. Não me casei, embora tivesse tido diversas oportunidades. Há anos não falo com minha família, não sei se estão vivos ou mortos. Acabei me desligando deles conforme o tempo passava e assim ficamos por anos. Às vezes temo que não tenham me procurado por realmente algo ter acontecido, meus pais já eram velhos quando me formei. Inclusive no dia que me formei não me lembro de tê-los visto. Recordo-me de ter voltado para casa ao fim da cerimônia sozinho e assim ter ficado por um bom tempo. Sem festas, farras e durante dias mesmo, sem uma palavra. Sinceramente não sentia falta dessa agitação.
Há alguns anos comecei a acordar com uma leve tontura, que foi piorando com o tempo e se estendia ao longo do dia. Incomodava-me no trabalho, então fui a um médico e após alguns exames foi diagnosticada uma doença rara que afeta a visão. Dentro de pouco tempo eu estaria completamente cego e sem expectativa de voltar a enxergar. No início foi um choque. Fiquei sem dormir por semanas. Mas aos poucos fui me conformando. Meu chefe informou-me que estava trabalhando nos papéis de minha aposentadoria por invalidez e dentro de três meses eu já não trabalharia mais. Foi o segundo choque. Não tive a menor vontade de procurar minha família, até porque não saberia onde procurá-los passado todo aquele tempo.
Embora parecesse paradoxal resolvi, na minha primeira semana de aposentado, colocar uma câmera fotográfica na mochila e mudar-me para o sul, onde o inverno era rigoroso e havia uma região com muitas montanhas. Já conhecia o lugar através de fotos e fiquei com vontade de vê-las pessoalmente. Hospedei-me em um hotel perto das montanhas. Para o meu descontentamento o povo sulista era demasiadamente hospitaleiro e faziam-me perguntas o tempo todo. Perguntas que não queria responder, queria ficar calado. Mas o ambiente e o clima frio me agradaram. Conheci as montanhas e perto dessa região comprei uma pequena casa, de onde as via de frente, onde passaria o restante de minha vida. As montanhas eram mais lindas ainda pessoalmente. Eram enormes e contrastavam com o céu cinza chumbo de uma forma única. A noite, pela janela de meu quarto, conseguia ver as nuvens se alojando nos seus picos mais altos. E muitas vezes fiquei acordado até o amanhecer para ver a alvorada por detrás das nuvens. Não havia duvida, era esse o lugar. Por mais que não fosse voltar a vê-las quando velho, era defronte a um lugar assim que queria morar. E mesmo que não pudesse ver as fotos que tirava, segui fotografando aquela paisagem dia e noite, de todos os ângulos possíveis.
Passei a usar uma bengala e óculos escuros para tentar adaptar-me ao local o quanto antes, e também evitar contato o povoado. Passei a aceitar ajuda para atravessar a rua e rejeitei uma doação de um cão guia. Tirava as fotos quando sabia que estava absolutamente sozinho e sempre cada vez mais de perto das rochas que davam origem as montanhas. As poucas pessoas que tinha, mesmo que fosse um pequeno contato, julgaram que já estava cego. E cego ou não sabiam que era de pouco diálogo. Ao passar de quase um ano a cegueira não apareceu e eu já vivia mais dentro do meu personagem do que havia planejado. Tinha todos os modos e costumes de uma pessoa cega sem ser.

Estava completamente adaptado ao meu futuro estilo de vida, e em uma manhã de domingo de extremo frio, fotografava a entrada de uma pequena caverna no pé de uma das montanhas quando ouvi passos perto de mim que vinham se aproximando com rapidez. Mal tive tempo de colocar os óculos e esconder a câmera entre as rochas, quando uma menina linda de um vinte e poucos anos que aparentava ser cega acompanhada de um senhor de idade. Passaram por mim apressados em direção ao povoado. Minha atitude suspeita chamou a atenção do homem, que a aproximou de seu corpo rapidamente em um movimento de proteção, sem notar acabei seguindo-o com os olhos e ele a mim.


SEGUNDA PARTE, SEGUNDO ELA:

Perdi a visão de forma repentina há cinco anos, pouco depois que vi minha mãe morrer. Vivo com meu pai desde então numa casa enorme. Vivemos do dinheiro da aposentadoria de meu pai, que a cada ano que passa está mais doente. Tenho esperanças de que melhore, mas no fundo sei que em breve me deixará também. Na verdade ser cega não é tão ruim quanto eu pensava, não suportaria vê-lo como vi minha mãe, magra e pálida. Há coisas que é melhor não ver, embora não tenha escolha de não senti-las. Meu pai tenta preparar-me para sua morte, para que eu tenha uma independência. Leva-me diversas vezes a diferentes pontos do povoado para que eu memorize o caminho. Avisou-me sobre lugares que não devo ir, pessoas com quem não devo cruzar. Aprendi com o tempo a notar a voz das pessoas, o tom, o timbre, e as emoções que tentam disfarçar através delas. É como olhar alguém nos olhos, como ler seus pensamentos. Os pensamentos de meu velho pai entregam seu amor e zelo por mim, às vezes excessivos. Pude notar respeito que ainda tem por minha mãe também quando o ouvi negando um convite de sair com uma mulher que o reconheceu na rua. Eu estava com ele, mas ela mesmo assim o convidou. Era como se eu fosse surda ao invés de cega, mas as palavras e o tom pesaroso na voz dele ao negar o convite indicavam sinceridade. No mesmo dia íamos em direção ao povoado quando algo assustou papai, ele se aproximou de meu corpo me abraçando com o intuito de proteger-me, hesitou, mas não parou de andar. Questionei o que se passava e ele disse que um homem alto, de cabelos escuros tirava foto das montanhas e quando sentiu nossa aproximação vacilou e jogou a câmera entre as pedras e pôs seus óculos escuros, mas antes disso o olhará como tivesse sido descoberto. Pediu-me que não passasse por ali mais.

Pouco tempo depois disso papai ficou de cama e em duas semanas veio a falecer.


TERCEIRA PARTE, SEGUNDO ELE:

Ela era linda, simplesmente maravilhosa. Tinha uma beleza selvagem e singela ao mesmo tempo, difícil de explicar. Cada traço de seu rosto era doce e perfeito. O jeito como andava, mesmo agarrada ao braço do pai era gracioso. A visão mais linda que já tive desde que cheguei. Embora aparentasse a cegueira estava muito bem vestida e maquiada, como se desenhasse seu rosto todo dia de manhã. Naquele dia fui embora para casa com algo palpitando em meu peito, algo anormal. Assim fiquei por dias, tentei disfarçar, mas o rosto e corpo dela não saiam de minha cabeça. Pensei em fotografá-la e assim poder admirar suas fotos o dia inteiro. Caçaria aqueles traços por cada canto desse lugarejo. Cada segundo que a pudesse ver valeria a pena, afinal de contas não sabia se amanhã ou hoje mesmo deixaria de ver e me arrependeria certamente de não tê-la visto novamente. Saí de casa de manhã cedo com bengala, óculos e com a câmera na bolsa na esperança de vê-la. De tanto pensar nisso a imagem dela em minha mente estava ficando demasiadamente fantasiosa, minha retina precisa vê-la novamente para guardá-la. Rodei por alguns dias e nada encontrei, porém no ultimo dia de caça vi muitas pessoas rumando com lágrimas nos olhos, vi um caixão em meio às pessoas e de luto na segunda fila da procissão, cabisbaixa e chorosa, sendo guiada por uma velha senhora. Deduzi que o homem no caixão era seu pai. Era mórbido, mas ela estava linda de preto, seu cabelo era muito comprido e liso, tinha um tom avermelhado e uma franja que a deixava parecida com um anjo. Acompanhei-os até o cemitério e sol começa a se pôr quando chegamos. Algumas pessoas se aglomeravam ao redor do caixão e esperei que ela se posicionasse. Ela ficou junto á lápide há uns quatro passos do caixão. Achei uma árvore de tronco largo e galhos grandes há alguns metros dali e certifiquei-me de não estar sendo visto. Saquei a câmera e o ângulo que tinha dela era simplesmente perfeito. Fotografei suas mãos, vestidas angelicalmente com luvas pretas de renda, e seus dedos que se entrelaçavam como se orasse naquele momento. O casaco que vestia deixava o pulso à mostra até onde as luvas passavam a vestir. Sua pele tinha um tom claro e uma textura macia, sedosa. Seus ombros eram pequenos, como os de uma boneca, afinavam até o pescoço que era limpo, sem colares ou adereços. Seu queixo era fino e sua boca também. Poderia ficar ali por horas. Tinha definitivamente todos os traços delicados e bem feitos e o fato de estar triste não a tirava ou diminuía esses méritos, pelo contrário. Com o tempo familiares e amigos a cumprimentavam mais e tive que cessar as fotos. O caixão desceu e algumas pessoas iam indo embora, voltei a misturar-me com os demais e com eles fui embora, a segui para ver onde morava. Era uma pequena casa de madeira de dois andares. Do outro lado da rua pude ver que ela se negara a ir a algum lugar, que preferia ficar sozinha em casa. Fiquei seriamente tentado a subir, dar-lhe meus pêsames e poder ouvir sua voz. Não sei como e tampouco sei se me receberia. Seria pegá-la num momento de fraqueza. Ela entrou e fechou a porta, mas fiquei ali fora por alguns momentos ainda, talvez horas. Olhando para a casa fechada numa noite fria. Tomando coragem para bater a sua porta.


QUARTA PARTE, SEGUNDO ELA:


Estava arrumando-me para deitar, mesmo que não fosse conseguir dormir. O caminho do velório até o cemitério foi cansativo, parecia que não chegaríamos nunca. Cada mão que pegava em meu ombro com uma palavra de consolo parecia afundar-me mais em tristezas e recordações. Papai era um homem conhecido, nasceu ali e ali viveu a vida toda, assim como mamãe. Tive por alguns instantes a vontade de dormir e não acordar mais tamanho era o vazio em meu peito, senti-me sem um braço. Senti vontade de correr sem parar até não ter pernas. Pensei em me mudar pra bem longe, começar tudo de novo... Deitei e passei a pensar nisso. Algo deveria mudar... Levantei-me e decidida a deixar a cidade junto com o nascer do sol comecei a procurar minhas malas, mas alguém bateu à porta. Já era tarde e algo dizia que deveria abrir. Era um homem, meio sem graça, sem jeito para falar. Ouvia a voz dele acima da minha cabeça o que significava que era alto. Pediu-me desculpas por incomodar-me àquela hora da noite e dizia que era amigo de meu pai, que fora pego de surpresa com a noticia. Não o convidei para entrar e também na hora achei que ele não esperava esse convite. Falei que não me recordava de seu nome e tampouco de sua voz, embora essa, apesar de insegura, fosse muito grave e bonita. Gaguejou sem graça e disse que fazia tempo que não o via, o que justificava o fato de não saber que papai estava doente quase cinco anos. Agradeci a estranha visita e fui fechando a porta, mas ele segurou a porta e disse que se recordava de mim e que eu continuava bonita, assim como ele me imaginara estar. Essa frase da forma como foi dita ruborizou-me na hora, mas agradeci e fechei a porta. Fiquei pensando no que ele disse e tentei resgatar da memória seu nome ou voz. Passei a limpo minha memória de infância e nada. Pouco dormi nessa noite. Ao amanhecer fui ao mercado da cidade e perguntei ao dono pelo nome do homem que havia me visitado, disse-me que sim, que o conhecia e que se tratava de um homem cego de cabelos pretos que morava perto das montanhas e que há pouco deixara o local, que não deveria estar longe, ofereceu-me ajuda para encontrá-lo, mas neguei. Cego?

Como falar com ele novamente? Como poderia ser cego? Voltei para casa e sentei no sofá. Deixei as malas prontas para me mudar, ficaria em um hotel em outra cidade até repor os pensamentos no lugar. Embora não tivesse visto papai morrer sinto o cheiro dele por toda a casa e isso apenas traz lembranças que não são bem-vindas agora. Deixei as malas perto da porta e voltei a sentar. Pensativa. No fundo queria que ele voltasse a bater à minha porta e por isso esperei. A noite chegou e adormeci ali no sofá. Acordei de madrugada sentindo-me terrivelmente sozinha e chorei... Chorei o que não tinha chorado por anos... Já era de manhã quando resolvei pegar as malas e ir embora quando ouvi batidas na porta. Meu coração disparou, mas não sei por que, poderia ser ele como poderia ser algum vizinho para consolar-me. Enxuguei os olhos e abri a porta. Pude sentir os raios do sol atrás dele projetando sua sombra em mim. Ele perguntou como estava e perguntou se precisava de algo, falei que nada se passava e que estava de partida. Pedi que entrasse e ofereci um chá. Vi que o som de uma muleta se misturava a seus passos. Notei que tateava os moveis a procura de onde sentar-se. Questionei há quanto tempo era cego...

QUINTA PARTE, SEGUNDO ELE:


Respondi que era cego há pouco tempo, devido a uma doença. Falamos um pouco sobre essa coincidência e sobre outras coisas. Entre um assunto e outro fazia perguntas para tentar se lembrar de mim, mas disse apenas que era conhecido de seu pai e que havia passado um tempo fora. Mesmo através do óculos escuros era impossível não notar sua rara beleza e delicadeza. Tinha uma casa muito bem organizada, limpa e estrategicamente montada para ela. Contou-me que estava de partida para outra cidade, que precisava mudar de ares, porém não com muita segurança. Num impulso ofereci-me para ir junto. Ela riu como se gostasse da idéia, mas disse que eu deveria ter família, mulher, filhos. Disse que não, que era um cego solitário como ela e que um recomeço ao seu lado seria perfeito para mim. Ela estava sem óculos, pude ver que tinha olhos castanhos claros e que brilhavam muito, se eu não soubesse que não enxerga não adivinharia nunca. Em uma situação normal acho que me olharia nos olhos, porque era o mesmo que eu fazia com ela. Então pediu que dissesse algo... Segurava a caneca de chá de forma inquieta, esperando que eu tomasse a frente da situação. Segurei sua mão, toquei seu rosto e a beijei. Tocar aqueles lábios foi a coisa mais incrível que já havia feito. Disse-lhe que sim, que gostaria de ir junto para outra cidade e assim o foi. Em uma semana já estávamos morando juntos bem longe dali.

Fechei dois anos à espera da cegueira que graças a Deus não apareceu. Talvez a única coisa que me agradava mais que ficar com ela era ver seus movimentos, como andava pela casa, a expressão que seu rosto trazia. Montamos tudo conforme era necessário, eu cozinhava na maioria das vezes e ela me perguntava como fazia sem enxergar, eu desconversava, disse que tive um restaurante onde morava antes. Ela quis contratar uma empregada para fazer os demais afazeres e fui contra, afinal estávamos nos arranjando bem daquela forma. Era um prazer viver ao seu lado e tudo estava perfeito.

Tínhamos um balanço nos fundos que ela gostava muito, ficava perto de um pequeno jardim que ela cuidava e que exalava um aroma doce e suave. Gostava de ficar ali por horas. Numa tarde de outono eu observava aquela cena quando decidi registrá-la. A iluminação natural estava ótima e não poderia ser melhor, sem que me ouvisse ou sentisse tirei diversas fotos, que mais tarde revelaria num quarto aos fundos que mantive fechado a chave. Fotografá-la era mais uma forma de mantê-la mais viva em minha memória. Entramos, jantamos e deixei que fosse tomar banho. Vi quando tirava sua roupa com leveza. Saquei novamente a câmera e fotografei novamente aquela mulher fantástica enquanto tocava cada parte de seu corpo de forma intima e delicada enquanto a água quente a acariciava e levava a espuma embora. Quando terminou guardei a câmera em uma caixa que ficava no alto do guarda roupas onde ficava também a chave do quartinho, que não era um local de fácil acesso para ela.

No dia seguinte fui ao mercado sentindo-me culpado... Comprei ingredientes para fazer a sua comida favorita e também uma bebida. Encontrei a casa no mais absoluto silêncio. Ela dormia como um anjo no sofá e seria um pecado acordá-la, então fui revelar as fotos no quartinho dos fundos. Revelei mais de cinqüenta fotos suas e todas eram maravilhosas, peguei um copo com rum e fiquei trancado no quarto olhando detalhadamente cada uma delas... Por horas...
Dei por mim quando ela disse meu nome quase na porta do quartinho, quase me matando de susto, perguntou o que havia e eu disse que nada, estava apenas tomando um pouco de rum, mas ela notou meu nervosismo e perguntou sobre aquele quarto que eu havia dito que estava com a porta emperrada, respondi que tinha conseguido abri-lo e que não tinha nada além de uma bancada com algumas bacias e um varal. Ela ficou quieta depois daquilo e quase muda por uns dias. Senti-me culpado por ter mentido, não só dessa vez, mas por todas as outras... Para piorar no dia seguinte senti a visão um pouco embaçada e fiquei desesperado! Justo agora a cegueira apareceria. Fiquei alterado por uns dias, mas ela não perguntou o que havia acontecido. Não dormia a noite com medo de acordar completamente cego no dia seguinte, mas não resisti e dormi. A fatalidade veio a acontecer.


SEXTA PARTE, SEGUNDO ELA:


Havia sem duvidas algo de estranho acontecendo em minha casa e eu não sabia o que era. Depois do fato da descoberta do quarto dos fundos ele mudou muito, anda calado e tenho tentado saber o que se passa. Ele estava dormindo muito pouco, até que um dia despertou completamente assustado, sua pele estava gelada e ele estava muito nervoso. Disse que chamaria um médico e ele disse que não precisava, que apenas tinha tido um sonho ruim. Saiu a andar pela casa tropeçando em praticamente tudo, caiu algumas vezes da escada, queimou-se na cozinha e mesmo assim seguia contra contratarmos uma empregada. Flagrei-o chorando sentado como uma criança um dia de manhã em frente ao quartinho dos fundos. Questionei o que afinal estava acontecendo e ele nada conseguiu dizer. Sentei junto a ele e ali ficamos abraçados por algumas horas, ele parecia pedir socorro e não sabia como ajudá-lo. Comia pouco e passou a emagrecer, se negava a ir ao medico ou a receber a visita de um, por vezes dizia que me amava muito como se fosse prosseguir e contar algo, mas calava ou o choro o impedia. À noite na cama, um pouco mais calmo, após alguns carinhos disse-me coisas lindas que nunca havia dito antes, a maioria delas eram agradecimentos por ser alguém especial em sua vida e que nunca tinha tido alguém assim. Depois de muitas noites em claro ele dormiu bem novamente. Mas para a minha surpresa, pela manhã eu abri os olhos e vi um clarão, fechei-os novamente e abri bem vagarosamente. Era um lindo raio de sol que entrava casa adentro através da minha janela. A visão começou muito embaçada, mas aos poucos foi ficando nítida. Entrei em êxtase, estava voltando a ver, poderia ver tudo novamente. Acordei-o e contei que podia ver novamente, embora meus olhos doessem um pouco e pra minha surpresa ele se enfureceu, me questionou, pensou que estava zombando de sua cegueira, disse que não, que era lindo, depois de muito tempo estava vendo tudo novamente, falei de como ele era mais bonito que eu pensava e ele começou a gritar. Levantou sozinho e tentou sair, mas caiu em frente à porta do quarto. Sentia-me tonta, mas mesmo assim tentei ajudá-lo, ele me empurrou, disse que não precisava de ajuda. Comecei a chorar também, não sei se de alegria ou de tristeza. Recusou-se a falar comigo o dia todo com uma fúria no rosto.
Olhei pela janela e o vi no balanço onde me sentava todas as tardes, vi o jardim que eu cuidava com todo amor e carinho, era primavera e ele estava magnífico. Com orquídeas e margaridas, pensei que há anos não via uma flor, não via cores, não via o céu. Foram anos e mais anos sentindo apenas o calor do sol na minha pele e agora ele estava bem ali acima de mim. Exatamente como eu me recordava dele. Olhei-me no espelho e enchi novamente os olhos d’água. Estava dez anos mais velha, mas poder ver meu rosto outra vez é algo que não há tempo que pague. Vi um vestido azul lindo que ele havia me dado quando chegamos aqui e as demais roupas que usava, meu cabelo continuava como eu imaginava, era mágico. Mas não tínhamos o costume de guardar nada no alto dos móveis e uma caixa de sapatos me chamou a atenção em cima do guarda roupas. Para o meu espanto havia nela uma câmera fotográfica profissional e pelo manuseio não estava desativada há muito tempo. Junto a isso encontrei uma chave... Fiquei estática por alguns instantes, que se passara ali? Tremendo muito fui diretamente ao quartinho rezando que aquela porta não abrisse, mas ela abriu. Dei logo de cara com muitas fotos minhas penduradas por todos os lados, fotos que não quero voltar a ver e que devido o tamanho da mágoa seriam o único motivo pelo qual eu gostaria de perder a visão novamente...

SÉTIMA PARTE, SEGUNDO ELE:

Aquilo não poderia estar acontecendo, era um pesadelo... Sentado aqui não tenho forças para levantar-me e tenho vergonha de pedir algo a ela. Estou pagando um preço alto por tudo que fiz, mas não fiz por mal, eu juro. Mas pouco importa o que eu jure ou não. Eu no lugar dela me deixaria apodrecer aqui nesse balanço onde nem chorar eu consigo mais, nem isso me é permitido. Estou fadado a carregar o peso da culpa pro resto da vida e mesmo que ela me perdoe eu não permitirei, não o mereço. Eu não mereço falar uma palavra sequer. O certo é que daria tudo para vê-la novamente, não posso esquecer seu rosto...


OITAVA E ÚLTIMA PARTE, SEGUNDO ELA:

...mas os olhos que choram são os mesmo que vêem e os mesmos que se emocionam. Olhei novamente pela janela e o vi lá sentado, com os olhos bem abertos em direção ao céu, tentando ver alguma coisa, talvez o raio de sol que vi. Ele tenta chorar, mas não consegue, parece que já sabe o que acabei de descobrir e está destinado a viver com isso.

Peguei a câmera, tranquei o quartinho à chave, os devolvi para a caixa de sapatos e coloquei tudo em seu devido lugar novamente. Algum tempo se passou e ele não falou mais nada, nunca mais, mas tentou enterrar a caixa e a chave no quintal. Em um ataque de solidão desenterrou-a e ficou horas com a câmera na mão, e por vezes abre a porta do quartinho e coloca as fotos bem diante dos olhos como se ainda as pudesse ver. Exatamente como se eu não estivesse ali.


Fim!!!

Gabriel de Deus / Pássaro
Fire forever!!!

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