terça-feira, setembro 08, 2009

Inverno Rigoroso

George chegou ao centro da cidade junto com o inverno. Com 44 anos, cabelos prateados, uma perna que era pouca coisa maior que a outra, uma mala já bastante gasta com no máximo duas mudas de roupa, barba por fazer e pouco dinheiro. É certo dizer que também chegou sem suas filhas, com quem brigou antes de sair de casa. Ele tentou, assim como fazia em sua casa antiga, ficar mudo e sisudo para chamar a atenção e conseguir o que queria, mas não entendia bem o que se passava naquela parte da cidade e tampouco os demais ligavam para seu rosto fechado. Demorou até conseguir um lugar para ficar e até lá morou em um beco estreito, onde dividia com uma senhora, um papelão e uma panela. A mulher não entendia um só murmúrio que saía da sua boca, então lhe ofereceu um cobertor e recebeu a confirmação com a cabeça. Ele tentava dizer para ela, ora com gestos, ora com palavras, que era um homem muito respeitado em seu antigo bairro, e que por causa de uma infelicidade acabara por ser assaltado, mas a velha senhora, que nada entendia, deu de ombros.
Um pequeno rapaz, que parecia ser filho daquela mulher, acordou-os e indicou que havia reaberto como era de costume no inicio do rigoroso inverno, um albergue a duas quadras dali e que eles poderiam ficar lá por um tempo. George, guiou-se pela expressão no rosto dos dois e julgando que seria algo bom seguiu-os, afinal o inverno realmente começa de forma muito forte e pelo menos teriam um abrigo. O albergue tinha muitos quartos, um terço para homens, um para mulheres e um terceiro para casais, lá também era servida comida ao meio-dia e um lanche à tarde. Todos tinham que estar dentro do local até às 19h ou então ficavam na rua.
George passou a dividir seu pequeno quarto com outros sete homens, todos na mesma faixa etária e com muito custo, um dos senhores conseguiu-lhe um emprego na cozinha do albergue. Um mês já se passara e sob o ponto de vista de todos no local era ele um homem comum, e a todos já tentara falar sobre sua vida no antigo quarteirão e como era conhecido e respeitado, porém poucos entendiam uma ou duas palavras, não lhe davam a devida atenção, ou ao menos a atenção que ele queria.
Com o passar do tempo ouviu-se muito falar o nome de um garoto de no máximo 15 anos de idade que, assim como George, fazia suas refeições e dormia no local. Esse tinha o olhar demasiado profundo e parado e embora tivesse o rosto fechado era amável com todos, e todos ali o admiravam muito, era como um amuleto ou talismã da casa. O rosto marcado pelas olheiras lhe aparentava ter mais idade do que realmente tinha e a cozinheira chefe fazia sempre um almoço especial para o menino, mais reforçado, até com especiarias que os demais não ganhavam e tampouco reclamavam, e que se ganhassem eram capazes de dá-las ao menino. Ele sempre foi gentil e educado, agradecendo os afagos e aos poucos com sua simpatia ganhando também a admiração de George, mas este não sabia bem o porquê de tudo isso.
Certa noite um dos homens que dividiam o quarto começou a falar sobre sua vida antes de chegar ali, mas quando George tentou entrar na conversa ninguém lhe deu a mínima e ele virou-se para a parede, enrolou-se em seu cobertor, porém não conseguia dormir. O mesmo homem que tinha iniciado o diálogo passou a falar sobre o menino, e como era exemplo para todos, pois trabalhava em dois lugares e tudo que ganhava dava à mãe que era doente, para que esta ajudasse também sua avó, que moravam num quarto tão pequeno que o próprio rapaz não pôde ali ficar. Quieto, George ouviu a tudo e no mais íntimo cômodo de sua solidão passou a pensar que o menino comparado a ele não era tão mais virtuoso, afinal. O menino teve por um tempo uma casa, e ele que morara na rua e dormia debaixo de um papelão? E ele que brigou com as filhas e teve que morar em um lugar desconhecido? Se ele é tão maduro e responsável gostaria de saber como agiria se sua mulher estivesse morrendo por falta de remédios ao seu lado e ele estivesse desempregado, pois há poucos empregos para pessoas da minha idade... E se as filhas chamassem-no de vagabundo e o culpasse por tudo? Duvido que suportasse essa pressão... Certamente essas pessoas que o bajulam não sabem da minha história, se o soubessem me bajulariam e me dariam feijão com bacon também!
Passou a crer que ninguém o bajulava porque era velho e já não era mais bonitinho como antes ou que tinha a mesma simpatia.
No outro dia estava tão mal-humorado e amargo que o clima na cozinha ficou pesado. Fatiou com força o bacon que faria parte do almoço do rapaz pensando que aquele agrado lhe pertencia. Olhou a todos com ira nos olhos, atirou facas e garfos sujos na pia com força, a ponto de os mesmos voarem longe e caírem no chão. Não abriu a boca nem para o rotineiro bom-dia, nem mesmo para os amigos de sempre ou para cozinheira-chefe. No momento em que as pessoas passaram a servir-se fez questão de ficar na bandeja do feijão, onde olhou feio para todos que passavam. No momento em que viu o menino, além de não responder ao seu bom-dia, serviu-lhe o mesmo feijão dos outros e fez uma expressão no rosto de quem gostaria que o menino retrucasse, mas ele não falou uma só palavra, virou as costas e foi para sua mesa, foi quando George gritou:
- Comerás o mesmo que todos aqui, meu jovem... Não és mais que ninguém, ouviu bem? A chefe da cozinha, assim como o rapaz, olhou-o com surpresa e então interviu: - Como assim? Não mesmo... Venha cá que vou completar seu prato... Onde já se viu...
George explodiu em si, ficou irado e com olhos raivosos. Jogou a bandeja no chão xingando a tudo e a todos, chutou colheres e facas para todos os lados e subiu as escadas em direção ao seu quarto, já sem seu avental. Como era o único que não tinha emprego fora do albergue ficou sozinho em seu quarto até a noite. Pensou em ficar como em sua casa, sisudo e calado até que alguém viesse lhe bajular para saber o que tinha se passado. Às vezes resmungava algo incompreensível com o nome do garoto no final da frase para chamar a atenção, mas ninguém o ouviu. O homem não saiu para o café no fim da tarde, tampouco saíra do quarto para tomar banho. Ficou ali até que os seus companheiros de quarto chegaram, falantes como sempre. Ele estava deitado virado para a parede, mas fez questão de agitar-se o suficiente para que notassem que estava acordado. Os homens não lhe dirigiram a palavra e foram dormir como de costume. Nesse momento ele decidiu que não trabalharia mais na cozinha do albergue, iria arrumar dois, três empregos se preciso durante o dia e mostrar para aqueles puxa-sacos de uma figa quem era o homem ali e que o garoto não sabia de nada... Decidiu acordar cedo e sair antes de todos, para que ninguém ficasse lhe fazendo perguntas sobre onde ia ou sobre o acontecido do almoço passado.
Porém o dia amanheceu mais frio que de costume... Chegou a levantar-se, mas olhou pela janela e não viu as calçadas, apenas neve e mais neve. Pensou em ir na manhã seguinte, afinal um dia assim não se via sempre. Voltou para a cama e ali ficou o dia todo, sem descer para almoçar, tomar café ou banhar-se. Ficou preparado caso alguém desse pela sua falta e viesse ver se estava bem, mas isso não aconteceu. O que o deixou mais irritado ainda e o motivou a acordar mais cedo ainda na manha seguinte para sair e procurar os três empregos, mas ao levantar viu que já havia pessoas de pé saindo à rua e o frio não diminuíra, então não achou conveniente ser visto, só queria que o vissem quando já estivesse trabalhando. Foi à cozinha, pegou alguns biscoitos mais outro cobertor no armário e voltou para a cama. Lá ficou novamente o dia todo, devidamente preparado caso alguém invadisse o quarto e lhe fizesse perguntas... Mas isso não aconteceu novamente. A manhã seguinte era sábado, o que precedia o domingo, e George não saiu de seus aposentos. Mas na segunda-feira sim... Sem dúvidas o dia mais gelado que já pôde presenciar, o que daria mais valor a sua conquista... Levantou cedo, todos em seu quarto ainda dormiam, estava sorridente... Mas seu rosto fechou quando ouviu um burburinho de vozes e choros no andar de baixo.
Desceu e viu que praticamente toda a população do albergue estava em frente ao quarto do menino, alguns pálidos, outros desolados... O menino não resistiu ao frio e veio a falecer. Viu que em um canto havia um grupo de pessoas que discutia que alguns o viram levando seu cobertor para a mãe uma noite antes, e também debatiam uma forma de ajudá-la já que o garoto era a sua única fonte de comida e remédios. Ficou mudo.
Voltou ao seu quarto, caso alguém precisasse de sua ajuda saberia onde encontrar-lhe. Ninguém precisou. Sozinho devaneou sobre o menino, que todos admiravam por sua morte heróica. Na noite seguinte, vendo que todos estavam abatidos e tristes ainda pela tragédia, e sentindo mais frio que na noite anterior, deixou propositalmente seu cobertor cair no chão. Dormiu sob um frio de menos 6 graus com o corpo descoberto. Amanheceu com a pele em tom azulado. Tremendo muito. Mas todos no quarto já haviam saído e não se ouvia nada na parte de baixo do albergue.
Mais um dia se passou e nessa noite esperou todos dormirem, escreveu um lindo bilhete onde pedia perdão sobre o que tinha feito com o menino, que também o admirava muito e contando um pouco da historia de sua vida, que também tinha sido sofrida e amarga. Deitou nu no chão, sem cobertas ou lençóis. Não resistiu ao frio e veio a falecer. Ao alvorecer, seu corpo estava praticamente congelado. Deitou com o bilhete na mão, onde seria fácil achá-lo caso alguém fosse procurá-lo... Ninguém o procurou.

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