Todos na capela 5 seguraram o choro quando viram entrar no recinto e caminhar de cabeça baixa em direção ao caixão ninguém menos que o astro de telenovelas Ferdinando Mesquita. De luto, o ator usava uma casaca de veludo e um chapéu preto, que tirou em homenagem ao morto. Debruçou-se sobre o ataúde, pôs o rosto entre as mãos e derramou um pranto comovente, emocionante. Havia perto de 50 pessoas no recinto, claramente divididas em dois grupos maiores que pareciam não se falar. Na verdade pareciam nem se aturar. Um terceiro e menor grupo observava tudo de longe, num canto da capela. Eram duas mulheres, uma mais nova e uma mais velha, que parecia ser mãe da primeira e os dois grupos além de odiarem-se, odiavam também o discreto e terceiro grupo.
Uma senhora que parecia ser a mãe do morto foi a primeira a aproximar-se do inconsolável ator que ainda estava de cabeça baixa, pediu licença e perguntou:
- Desculpe incomodar, mas o senhor é mesmo Ferdinando Mesquita?
- Sim, senhora, mas nada de autógrafos, por favor, estou arrasado!
- Todos aqui estamos arrasados, amigo... Apenas queria saber se é amigo do Carlos.
- Amigo não, éramos como irmãos.... Mas se não se importa prefiro ficar sozinho...
A senhora volta ao seu grupo e com sua filha e suas irmãs e comenta:
- Ele disse que era como irmão do Carlos, não eram apenas amigos!
- Carlos nunca comentou que conhecia alguém famoso, ainda mais um ator de telenovelas como Ferdinando.
- Poderia ser uma amizade de festas, orgias, etc. Por isso nunca falou.
- Por favor, já basta a mulher dele insultá-lo com baixas calúnias, chega disso, por favor!
- Vai dizer-me agora que era colega de trabalho do Carlos? Ah, tenha dó. Carlos nunca foi chegado ao trabalho, isso é fato.
- Carlos herdou a vagabundagem do papai!
- Parem as duas, Carlos tinha um corpo fraco, nunca se deu bem com trabalhos forçosos.
- Vou tirar a prova agora mesmo, chega de suposições!
A irmã de Carlos aproxima-se do choroso ator, e questiona:
- Desculpe incomodá-lo novamente, amigo, mas onde conheceu Carlos?
- Puxa, são raros os lugares em que não há repórteres com mil microfones tirando nossa privacidade, agora nem de meu amigo consigo despedir-me... Carlos e eu trabalhamos juntos sim, desde o inicio de minha carreira ele ajudou-me muito.
- Trabalharam juntos? Tem certeza?
- Por favor, senhorita, não estou em condições de falar, quiçá de mentir, deixe-me em paz, despeça-se dele em silêncio, pelo amor que tem a ele.
A irmã voltou ao grupo e comentou:
- Ele disse que eram colegas de trabalho, que Carlos o ajudara desde o inicio da carreira... Puxa, quase nem acredito, será que não conhecíamos o Carlos esse tempo todo?
- Eu disse, eu disse... Vocês difamando meu filho e tampouco sabiam de sua bondade, ele sempre foi um filho excelente, dedicado e ...
-... E vagabundo! não há como negar, mamãe... Falamos do Carlos que ele mesmo nos mostrou!
Esse último diálogo, pela exaltação das falantes foi ouvido no segundo canto da capela 5, que era ocupado pela viúva, sua irmã e mais alguns de seus familiares, que comentaram:
- Essa é boa... Dedicado? Trabalhador? Duvido e muito que Carlos tenha feito tanto por aquele senhor a ponto de ser chamado de irmão. Ele deve ser um credor de Carlos e veio aqui para saber se ele morreu mesmo!
- Ele é ator, para ele seria fácil fingir uma tragédia...
- Mas porque Carlos deveria alguma coisa a alguém famoso? Um astro? A ponto do mesmo vir cobrá-lo no próprio velório?
- Carlos era cheio de truques... Sumia de noite, aparecia dias depois... Aparecia com roupas novas, sumia com as antigas, esse é o filho dedicado daquela velha coroca... Nunca me acreditou quando brigava com Carlos por causa dessa "dedicação toda"
- Você deve ter ouvido errado...
- Vou eu mesma tirar a prova!
A viúva, com o véu no rosto aproximou-se do caixão, colocou a mão sobre o ombro do ator e disse:
- Que bela atuação, hein?
- Outra? Poderia deixar-me em paz, senhora? Respeito sua dor, respeite a minha...
- Tudo bem, tudo bem... Apenas responda-me, a quantia que ele lhe devia era muita?
- Não seja ridícula, Carlitos nada me devia, até pelo contrario, eu é quem lhe devo e muito!
- O senhor deve a ele?
- Sim... poderia deixar-me a sós com ele agora?
- Ah, sim, sim...
A viúva volta ao seu grupo e com uma expressão de surpresa no rosto exclama:
- Ele não é credor de Carlos!
- Eram amantes?
- Não, não ponha mais essa dúvida em minha cabeça, quando questionei se ele era credor de Carlos ele disse que é ele quem deve e muito ao "Carlitos".
- Deve dinheiro?
- Não sei, só sei que deve...
- Se deve a um parente nosso que morreu, nada mais justo que cobremos, não?
- Ele é ator, deve ter dinheiro...
- Talvez esteja aí o motivo para vir ao enterro, para saber mesmo se o homem a quem ele deve tanto morreu mesmo.
- Bem pensado, bem pensado...
A viuvinha chegou a dar dois passos em direção ao ator, mas viu que a discreta moça do terceiro pelotão já estava ao lado dele, perguntando:
- Desculpe lhe incomodar, mas ouvi que o senhor era amigo do Carlão...
- Sim... Éramos como ir...
-... Como irmãos, sim, já ouvi também. Não quero incomodá-lo, apenas confirmar. Carlão era um homem ótimo, mas não me lembro de vê-los juntos.
Ferdinando ergue a cabeça, olha para a moça e diz:
- Não me recordo de vê-la com ele também...
- Nossa relação não era a que eu queria, tínhamos uma relação meio às escondidas e...
Nesse instante no segundo grupo:
- Algum de vocês sabe quem é aquela moça?
- Nunca a vi, será amiga do Ferdinando?
- Não, se fossem amigos ela já o teria cumprimentado.
- Será que eram amigos de festa e essa é uma das suas amantes?
- Sempre desconfiei de traições por parte do Carlos... Essa rapariga é bem o tipo dele...
- Ah, filha, um homem que deve dinheiro ao seu marido e a amante de seu marido vêm ao enterro do seu marido e você nada faz? Não a reconheço mais...
- Tem razão... Não vou ficar com todas as contas do Carlos se esse senhor lhe deve e muito... Ah, mas não perdem por esperar...
Numa marcha furiosa a viúva volta a aproximar-se de Ferdinando e da moça, pega-a pelo braço e questiona em voz alta:
- Vamos parar de tico-tico! O senhor que era muito amigo de Carlos saberá me responder! Já viu essa perua ao lado do meu marido?
Surpreso, o ator olha pela primeira vez atentamente ao rosto da viúva e diz:
- Seu marido? Eu nã...
- Eu sei bem o que se passa aqui, mas não vou deixar que desrespeite o velório de meu marido! Ouviu bem? Não vou permitir! Nem o senhor, que nem me importa quem seja e nem essa sirigaita que não se sabe de que buraco saiu!
- Por que tantas perguntas? Será o Benedito? Escute aqui, minha senhora, eu..
Nessa hora a mãe do defunto se pronuncia:
- Parem os dois, Carlos estaria se remexendo no túmulo se visse isso, que fiasco, que situação, meu Deus. E muito me admira que você, sua mulher ingrata, que tanto reclamou de uma suposta vadiagem de Carlos, esteja a fazer desse momento, que deve ser de respeito, uma balbúrdia! Esse senhor era amigo intimo de Carlos, tinha muito apego por ele, veio aqui para dar um adeus honrado ao seu amigo e presencia essa terrível cena.
Virando agora para o ator ela continua:
- Por favor, senhor ator, peço que não dê ouvidos a essa louca e faça um discurso em homenagem ao nosso amado Carlos, conte mais sobre sua amizade tão linda!
Nisso ela aponta a uma faixa que estava às costas de Ferdinando com uma foto finado com uma frase que dizia: "Carlos Prestes, toda comunidade do morro sentirá a sua falta"
Ferdinando fica em silêncio por alguns segundos olhando a faixa e pensa:
- Mas o sobrenome de Carlitos não era Prestes. Tampouco morava no morro... e tampouco era negro!
Virou novamente e percebeu que não conhecia nenhuma daquelas pessoas que estavam a sua volta. Pegou o microfone com propriedade e discursou:
- Ao contrário do que muitos pensam, eu também nasci no morro. Nessa comunidade. Carlos, ou Carlão se preferirem, e eu, éramos mesmo como irmãos. Mas mudei-me muito cedo daqui, fui para a cidade, meu sonho era tornar-me ator e muitas vezes pensei em desistir, mas Carlão não deixou, encorajou-me e tornei-me famoso e reconhecido no que faço. Muitas vezes ele deixou sua casa e sua família para ir até minha casa ajudar-me e aconselhar-me. Tenho uma gratidão muito grande quanto a isso. Era um homem trabalhador e honesto, digo isto com propriedade, sempre disposto a ajudar os amigos antigos. Pedi algumas vezes sigilo quanto a nossos encontros porque ainda não era conhecido e se um momento de fraqueza como esse vazasse seria ruim para um ator iniciante.
Nesse momento a mãe do honrado defunto caiu em lágrimas, abraçou sua filha tremendamente emocionada, recebendo abraços e cumprimentos de todos no local. A viúva, que antes era contra a sogra, procura-a e em sinal de humildade, também a abraça, todas extremamente tocadas com as palavras. Prometeram fazer as pazes e deixar as situações antigas de lado, essas rusgas eram demasiado pequenas perto dos feitos do grande Carlão.
Também emocionado o ator prosseguiu:
- Nunca vi, se me permitem Carlitos com postura indecente com essa ou outra mulher; era um homem fiel e digno. Cumprimento a todos pelo belo homem com quem conviveram. Eu mesmo não creio ter vivido ao lado de tal ícone!
A mãe ainda emocionada pergunta:
- Como recebeu a noticia de sua terrível morte? Um homem como Carlos morrer da forma como morreu é desumano...
Ferdinando se viu em uma saia-justa, hesitou por mais alguns segundos, colocou as mãos no rosto e disse soluçando em tom de choro:
- Foi horrível, não posso nem lembrar-me disso que...
Nesse instante a mais nova das moças do terceiro pelotão pega-o pelo braço levando-o em direção à porta e diz a todos:
- Essa lembrança foi muito forte para ele, o choque foi grande, vou levá-lo para casa para que possa descansar. Parabéns a todos pelo homem maravilhoso que era o Carlão, mas Ferdinando precisa ir.
Todos se despediram com um sorriso nos lábios e lágrimas nos olhos, pediram um telefone em que pudessem manter contato com o astro, mas já era tarde, ele já havia partido, sem que pudessem agradecer-lhe mais por tudo, inclusive Carlitos.